“A Peste” de Albert Camus
Ler est’A Peste nos dias de hoje, é como abrir o jornal Público todos os dias. Palavras como: infectados, mortes, pandemia, quarentena, equipamentos de protecção pessoal, salvo-conduto, entre tantos outros, são termos que, em poucas semanas se tornaram tão recorrentes nas nossas conversas quanto comida, trabalho, roupa, livros ou séries.
O cenário é uma cidade na Argélia, Orão, que se vê infestada e isolada pouco tempo depois de começarem a aparecer alguns ratos mortos pelas ruas. Pouco a pouco, também as mortes humanas começam a aparecer e, a muito custo, a palavra “peste” é proferida, mudando para sempre a vida dos habitantes de Orão.
Nós, hoje, sabemos o que se passa, embora ainda muito seja desconhecido sobre o vírus que nos assola que, tal como em Orão, mudará completamente a história da humanidade tal como a conhecemos.
Todos os dias, a todas as horas nos chegam, através dos mais diversos canais de informação, mais ou menos credíveis, novas actualizações sobre o estado de um mundo pandémico. Sabemos do morcego, sabemos de Whuan, sabemos de Itália e de Espanha e agora, também, do Reino Unido e dos Estados Unidos da América. Mas, em Orão, de nada se sabia. Sabiam que a peste havia, supostamente, sido erradicada do Ocidente há mais de 20 anos. Sabiam que, no reinado de Humberto, a Lombardia, em Itália, havia sido “devastada por uma peste tão violenta que os vivos mal chegavam para enterrar os mortos”. Em Orão não se sabia de nada antes dela chegar, não se sabia de nada quando ela chegou, pouco se continuou a saber enquanto ela durou e, muito menos ainda, quando ela desapareceu, remanescendo apenas a incerteza sobre o seu possível regresso.
Nesta obra, como vemos agora também, há de tudo: há o médico, há os altruístas, há os que, foragidos da sua vida, encontram na peste um novo propósito para continuarem a lutar e há, também, os que com ela pretendem lucrar, inflacionando de forma cruel, os preços dos bens de primeira necessidade. Há ainda os que se deixam corromper por uns breves trocados, que na realidade, e se morrerem, de pouco ou nada lhes servirão, e, desta forma, corrompem o sistema. E depois há a maioria, os que morrem e os que sofrem com a perda dos primeiros. Também há os que morrem longe da peste, os que nunca são infectados, os que morrem sem nunca se saber a causa, os que enlouquecem e os que, mantendo o seu corpo, acabam por perder a sua joi de vivre, a sua alma.
Podia falar muito sobre as metáforas políticas e sociais que Camus encerra neste livro, mas a verdade é que hoje, os tempos não estão para isso. Hoje, os nossos tempos são mesmo os d’A Peste e dos perigos para a saúde pública, psicológica e económica, é o tempo de pensar na coragem da qual precisamos todos: políticos, cidadãos e os prestadores de serviços essenciais que continuam na rua: para enfrentar a pandemia que se instala. Hoje o tempo é o de aprender a distinguir o essencial do supérfluo, de atribuir valor a tantos que aprendemos a menosprezar, uns porque a nossa supra-económico-pseudo-intelectualidade nos habituou a olhar para as suas profissões com uma altivez, quase sobre-humana, e outros que sempre acusámos de ganhar muito e fazer pouco, entre eles o nosso Sistema Nacional de Saúde.
Hoje é o momento de entender o poder que um único indivíduo pode ter sobre a sua comunidade. Hoje é o tempo de colocar a Humanidade à frente do Homem.
Mas, no final de tudo, se há lição que podemos tirar dest’A Peste, a de Camus agora e da nossa daqui a uns tempos, é que, na saúde e na doença, na riqueza ou na pobreza, juízes ou merceeiros, para esta pandemia somos todos iguais, e que tudo na vida, tal como em Orão, é, também, uma questão de sorte.
Orão, chegou ao ponto de não ter como enterrar tantos mortos, muitos deles acabando em valas comuns. Em Itália, sabemos que já não há tempo, sequer, para velar os corpos. Em Orão, sabemos como acaba, por cá, vivemos a incerteza de nem sequer se saber muito bem o que se passa, muito menos como, nem quando, isto vai terminar. Em Orão, quem sobreviveu à peste, ou acabou por se matar, ou entrou em estado depressivo profundo, ou, ainda, exacerbou comportamentos de entusiasmo em relação à vida, desrespeitando qualquer tipo de regra social ou jurídica.
Se tivesse lido A Peste há uns anos atrás (tenho o livro comigo desde 2007), não teria tido, de todo, a percepção da sua profundidade real (será que Camus tinha???), iria conhecer palavras novas que, mesmo já as tendo ouvido, para mim, elas não significavam rigorosamente nada. Tenho a certeza de que, quem leu A Peste há uns anos, nunca pensou que um dia iria viver dentro do livro, acharia uma bela metáfora sobre os comportamentos sociais e políticos de um mundo acabado de sair da II Guerra Mundial, ainda a apanhar os despojos de uma destruição massiva. Mas quem, como eu, lê hoje A Peste, não conseguirá nunca olhar para este livro como metáfora de nada, porque, agora, este livro retrata, exactamente, e da forma mais fidedigna, a nossa realidade. Arrisco-me ainda a dizer que, nos traz informação mais assertiva do que muitos meios de comunicação que perpetuam alarmismos e sensacionalismos.
Tenho uma boa colecção das obras de Camus na biblioteca que ainda não tinha lido porque sei que, devido à sua carga filosófica, me iria deparar com conceitos que me iam ser difíceis de apreender. Comecei com “O Estrangeiro” e depois “O Mito de Sísifo” que foi uma luta interior entre o querer perceber e o contactar com a minha falta de maturidade literária para os entender na sua plenitude filosófica. Mas, depois dest’A Peste, talvez me encontre mais preparada para desbravar, novamente, esse Sísifo que, neste momento, diz tanto sobre nós, e ainda “O Estado de Sítio”.