Clássicos e Ícones,  Opinião

“Anna Karénina” de Lev Tolstoi

No posfácio desta Anna Karénina, Nabokov realça e elogia a mestria de Tolstoi que, através das suas descrições realistas, consegue fazer corresponder a acção da sua obra exactamente ao nosso sentido de tempo: “As personagens parecem mover-se ao mesmo ritmo das pessoas que passam à nossa janela enquanto nos sentamos a ler um livro seu.”. Anna Karénina – a obra – decorre no espaço de 4 anos e meio, metade do tempo que tomei a lê-lo. E enquanto Anna se apaixonava por Vronski, Kiti se casava com Lévin, Dolli perdoava Oblonski, também eu me apaixonei, me desapaixonei, magoei, perdoei, adoeci, recuperei, perdi e reencontrei tantos significados e emoções que talvez conseguisse replicar as 760 páginas que acompanharam dois dos mais duros e emocionantes anos da minha vida. Há 35 anos que esperava por este dia – talvez exagere, duvido que tivesse tido conhecimento sobre Tolstoi no momento exacto do meu nascimento – mas há muitos anos que ansiava conhecer esta Anna Karénina e entender se era possível que eu me fundisse com ela, que ela se fundisse em mim, que os nossos seres homónimos se conectassem no lapso temporal de um século e meio. Queria sentir quem era esta mulher, como é que ela vivia na Rússia daquele tempo, que teria feito ela para se tornar tamanha heroína. Qual a empreitada que levara a cabo a ponto de imortalizar a sua presença no mundo desta forma. Enfim descubro o que sempre desejei: uma Anna forte, apaixonada, com o coração repleto de convicções que são as suas. Uma Anna que arrisca assumir a sua própria moralidade no seio de um mundo imoral, ao mesmo tempo julgada pela sua sociedade do contrário. Encontro-me, por fim, com uma Anna cheia de carácter, determinada a perseguir o seu ideal de felicidade, mesmo que isso signifique travar batalhas com a infelicidade a que acaba por se subjugar nessa demanda.. Anna Karénina era tudo o que eu desejava que ela fosse, inclusive na tragicidade do seu destino. Uma mulher como Anna não pode nunca ser uma alma tranquila, de tão avassalador que é o seu ser, o seu carácter, o seu amor: “Eu sou como uma pessoa faminta a quem deram de comer”, reflecte ela sobre o o amor adúltero que sente por um homem que ama tanto quanto ao seu próprio marido, Aleksei Karénin, um burocrata estadista 20 anos mais velho que ela a quem havia sido prometida desde muito nova. E com esta saciedade, caminha a passos largos e conscientes, em direcção a um amor predestinado à ruína. Arruína-se o amor, o amor arruina Anna e Anna arruina Vronski. Anna, a mulher “misteriosa, encantadora, apaixonada, a procurar e a oferecer felicidade” derrapa na sua própria desventura, embrenhada na imensidão do medo que sente de perder o amor do homem a quem se entregara, depois de ter perdido o seu marido, o seu filho e o respeito da sociedade em que se inseria. Ao decidir entregar-se a Vronski, Anna entrega-se na íntegra, porque não consegue conceber o amor de outra forma. Entrega-lhe a sua vida e a sua própria morte, como o derradeiro acto desesperado do amor. “Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

*texto publicado na edição de Maio de 2018 da Folha de Montemor e na plataforma ContraCenas.

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