Opinião

“Em tudo havia beleza” de Manuel Vilas

Barbastro, norte de Espanha, fica a uma hora de Ordesa que, por sua vez, fica a duas horas e meia de Lourdes, já em França. Saragoça situa-se a 140km (sudoeste) de Barbastro e Manuel Vilas, relembra agora estes trajectos em Madrid, a 436km e a tantos anos e vidas de distância.
Demorei muito tempo para conseguir escrever sobre “Ordesa” (mantenho o título original, porque o prefiro à sua tradução em português. Mas ontem, ao terminar de ler um seu conterrâneo e contemporâneo) comecei a perceber a razão. Não é fácil falar de um livro que expõe, sem complexos, as dores mais profundas de um autor, de um ser-humano. E comecei a pensar se era possível medir a dor. Os médicos usam uma tabela para que o paciente consiga identificar o nível de dor que sente. Esta escala tem vários níveis, do 0, que indica que o paciente não tem dor, até ao 10, que revela uma dor insuportável para o paciente, provavelmente, incomensurável para o médico.
É desta forma e neste contexto que se inicia a caminhada deste romance de Manuel Vilas, uma viagem que nos guia através dos corredores da dor, e da felicidade também. Uma dor que, nem ele, consegue “escalar” nos gráficos médicos que identificam as várias afectações da dor através de emojis, como aprendemos todos a esconder as nossas emoções. “Eu não sei muito bem o que sinto por ti = “eu ❤te”, até o hífen caiu, infectado, talvez, pelo novíssimo acordo ortográfico que ainda não chegou ao parlamento. Mas, mesmo através de uma escala de dor, será possível traduzir ao outro o tamanho da nossa ferida? E como o medimos nós próprios? As garrafas de bebidas alcoólicas acumuladas em sacos ao longo do corredor, pode ser uma delas, tal como o tamanho das cicatrizes no corpo. Há quem meça a dor de várias maneiras mas, por norma, a forma é sempre abrindo novas feridas. E os que aguentam muito para lá do 10, os que sentem prazer a partir do 8?

É através de fragmentos de vidas que começam a proliferar, nas nossas vidas, nas livrarias e nas nossas bibliotecas (para quem os aguenta, claro…), como novo género narrativo denominado “auto-ficção” ou “romance auto-biográfico”. Género que vem desde o século passado mas cujo “boom” devemos a “A Minha Luta” do norueguês Karl Ove Knausgård. Ao contrário de Vilas, que numa entrevista ao Público, disse que eram coisas diferentes, eu não as consigo distinguir de forma tão clara. Ambas têm a mesma premissa, narram (na primeira ou terceira pessoa), fragmentos da vida do próprio autor que no-los relatam, com mais ou menos ficção, como se estivéssemos à mesa de um bar, com garrafas de vinho ou cerveja já despejadas, saltando de memória em memória. A máquina a trabalhar em tempo real.
As maiores críticas negativas que li sobre Ordesa, são, sem dúvida, quanto ao seu estilo que bloqueia, à partida, quem não está familiarizado por ele, ou não se permite entregar à verdade nua e crua da vida (da do autor e da de quem lê). Li “a partir da página 100, não há história”, “não tem fio condutor, início, meio e fim.” E, enquanto isso pode ser uma quebra na rotina literária da maioria das pessoas, eu, rapidamente, percebi que era assim que gostava de ler, porque só desta forma sinto que consigo encontrar uma verdade no que leio, uma profundidade, porque o ritmo do texto acompanha o ritmo da vida. E, embora se possa dizer que a linguagem nada tem que ver com a dos romances-tipo, isso é porque, aqui, como na vida, não existem filtros românticos, ou finais felizes, ou finais sequer. Porque, tal como nesta bela história de Manuel Vilas, não é isso que interessa, porque nunca foi isso que o levou a escrever. O que interessa neste tipo de escrita é a veracidade e a forma como ela se-nos apresenta, crua, por vezes violenta, com humor, com saudade, desespero, amor, mas principalmente, com a poesia de quem deixa cair a máscara da vergonha, do politicamente correcto, de forma a conseguir depositar todo o amor e toda a dor que se sente, naquelas páginas.

Todos julgamos que a nossa vida tem uma linha condutora, só porque nela conseguimos definir um início e um fim. Mas, se pensarmos bem sobre isso, essas metas, embora respeitantes à nossa vida, serão sempre impostas e testemunhadas por outros que não nós. Somos incapazes de ter consciência sobre o nosso nascimento e a nossa morte. Alguns terão testemunhado o nosso nascimento, outros testemunharão a nossa morte e, se a vida seguir os seus trâmites “naturais” ninguém testemunhará ambos. No entanto, muitos partilharão connosco a forma como nos construímos enquanto seres humanos. Os fragmentos. A nossa vida não é mais do que um conjunto de fragmentos, mais ou menos contínuos, mais ou menos verdadeiros, às vezes mais desalinhados do que alinhados. Alguns poderão ser fantasiados, num misto entre memórias e registos fotográficos, ou a partir daquelas histórias que ouvimos os nossos tios contar nas noites de natal, exacerbadas por um pingo de álcool a mais, tal como acontece numa mesa com amigos. Depois também existe tudo o que é moldado pelas nossas emoções e sensações, momentos mais alegres, outros mais dolorosos. É preciso considerar, também o que a nossa memória decide seleccionar.

Manuel Vilas perdeu tudo, primeiro o pai, depois o casamento e entretanto a mãe, e o abismo em que se encontra, está a fazer com que perca os filhos. Vilas sabe porquê, porque foi filho e porque se perdeu do seu pai, da mesma forma que os seus filhos se estão a perder dele e sabe que não há fórmulas mágicas, nem contos de fadas onde a vida lhe permita apagar a influência que o seu pai e as suas atitudes passadas, têm na relação que mantém com os filhos, nos quais se revê continuamente enquanto ele foi também filho.

Numa Espanha separatista, Vilas recorda uma Espanha Franquista. Recorda um pai do qual se lembra antes de ser seu pai, do que perdeu durante o governo de Franco e como nada fez para o recuperar, como ele próprio agora, ex-professor e escritor que vive numa pobreza de classe média baixa, nada sente que pode fazer para o mudar. Manuel Vilas luta contra a impossibilidade de não poder recordar partes do seu passado, por não ter consigo quem lho possa confirmar.

Aquilo que Ordesa, o sítio onde sempre foi feliz, onde a sua família ia de férias, antes de Franco tomar conta da economia espanhola, onde “em tudo havia beleza”, faz, é discorrer sobre a vida sob a perspectiva da morte.

Este livro, considerado o “Melhor Livro do Ano” em 2019, é merecedor de 5 estrelas, no entanto, tenho de assumir que, com uma alma tão apaixonada por Knausgård (cuja influência sinto a cada página de Ordesa) que vai tão mais longe, de uma forma tão mais crua, cuja poesia cresce a par e passo com o toque de agressividade, me é impossível classificá-lo de outra forma.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *