A Candura de uma folha em branco
A Candura de uma folha em branco – texto publicado na edição de Setembro de 2018 da Folha de Montemor
Tempos infinitos a escrever, a sublinhar e a rasurar, a fazer crescer com o mesmo ímpeto com que se aniquila no momento seguinte, amassando a folha, outrora branca, que, sem piedade enterramos no lixo junto com os guardanapos sujos, os pelos dos cães e da gata e os restos do jantar de ontem.
Talvez seja por isto que a candura de uma folha em branco assusta tanto. É como que relembrar o eterno temor de falhar perante tamanha imagem de perfeição. O temor de ter de votar ao esquecimento e à inutilidade, memórias e emoções que, no momento em que despertaram em nós, considerámos tão reais e profundas, tão perturbadoras e poéticas e que, agora, uns tempos depois, olhamos como juvenis, desesperadas, idiotas e inúteis. Porque, cada folha folha escrita que se guarda é, como diz Karl Ove Knausgard, “um pedaço de tempo selado” e, todos nós ansiamos selar a perfeição. Talvez seja por isso que categorizamos de beta todas as versões de teste que escrevemos, para que, à partida, qualquer lixo se encontre protegido por esse conceito quando não atinge o desígnio da perfeição ao qual foi sujeito, a partir do momento em que a tinta da caneta azul começou a violar a candura da branca folha.
Há uns dias diziam-me: “Eu, enquanto poeta, não quero que me mostres apenas o que consideras as tuas obras-primas. Quero conhecer esse teu lixo, porque é nele que te encontro a ferida aberta e é nele que me quero inspirar.” E, se assim é, porque razão tememos tanto o nosso lixo? E se não conseguimos deixar de o temer, porque é que escrevemos? Numa entrevista ao Sol de 8 de Setembro, sobre o seu mais recente, e polémico romance, José Riço Direitinho dizia: “Tenho alguma solidão, e é por isso que escrevo. Se não tivesse solidão não precisaria da escrita para nada.”
Embora se possa ficcionar, quando se escreve, o exercício de escrever é sempre auto-biográfico. Pode não se escrever sobre o que se vive, mas isso não significa que não se escreva sobre aquilo que se deseja ou se imagina que nos pudesse acontecer ou ter acontecido.
E esta será sempre a maior razão pela qual se teme o lixo. O receio de que esse lixo seja premonitório da realidade onde nos encontramos.