Opinião

“Órfãos de Brooklin” de Jonathan Lethem

“Órfãos de Brooklin” de Jonathan Lethem é muito mais do que um policial, e isso pode parecer tão estranho quando o autor aconselhar a visitar a página da wikipédia a quem queira consultar sua biografia – podem encontrá-la aqui.

 

Cruzei-me com  “Órfãos de Brooklin” (“Motherless Brooklin” no original) num dos grupos de vendas de livros no Facebook. Tinha lido recentemente dois livros sobre São Francisco que me trouxeram à memória alguns documentários sobre pontes (eu tenho um fascínio por pontes e, embora não perceba nada de engenharia, gosto de tentar entender as suas construções), por isso quando vi a capa com a imagem da ponte de Brooklin achei que fazia sentido partir à descoberta das pontes de Nova Iorque, fui ao Goodreads espreitar a sinopse e as reviews do livro e em pouco menos de 15 minutos estava o livro a começar o seu caminho em direcção a minha casa.

 

Não vale a pena estar-vos a falar do enredo do livro de Lethem e, mesmo que vos contasse tudo, provavelmente não vos iria estragar o prazer da leitura – mas posso estar enganada, porque não foi o enredo que fez com que ele se tornasse um dos melhores livros que já li. Muito sucintamente, esta é a história de 4 rapazes, Lionel, Gilbert, Danny e Tony que cresceram num orfanato e que são resgatados por Frank Minna, um gangster, que morre logo no início. A acção decorre durante a investigação do assassinato de Minna e é-nos contada através da personagem de Lionel, que sofre da Síndrome de Tourette.

 

Foi exactamente pela forma como Lethem conseguiu construir o universo emocional desta personagem, a partir desta perturbação neurológica, que fiquei rendida a “Órfãos de Brooklin” – basta, aliás uma breve pesquisa para perceber que a força da história encontra-se nos tiques, físicos ou vocais, e em como eles afectam Lionel e em como o entorno de Lionel, por sua vez, os afecta a eles – a personagem está tão bem estruturada que se percebe como os ambientes e situações determinam a frequência e a intensidade destes tiques.

 

Os vocalizos de Lionel criam espaço ao autor para brincar com a linguagem, visto que a Síndrome de Tourette, entre outros sintomas provoca a expressão descontrolada de palavras ao acaso, por norma, em forma de palavrões. Transcrevo uma passagem demonstrativa, onde o autor consegue criar uma nova dimensão no discurso, neste caso quase poética, noutros casos caótica e quase disruptiva:

«_ Are you accusing Tony?

_ “Accusatony! Exucusebaloney! Funnymonopoly!” I squeezed my eyes shut to interrupt the seizure of language.» (transcrevo a frase no Inglês, porque na tradução em português, embora o esforço de manter um misto entre ambas as línguas, é incapaz de resultar da mesma forma).

 

No início do livro, Lionel regressa ao passado e conta-nos os seus primeiros anos no orfanato, de como estes 4 Órfãos de Brooklin se tornaram amigos e de como começaram os seus trabalhos para Frank Mina. Ainda sem saber a condição que o assolava, ou de que sofria de alguma condição sequer, e envolto na ignorância e pedantismo das freiras e no julgamento impiedoso dos restantes órfãos, Lionel sofre injúrias, emocionais e físicas durante toda a sua vida naquele orfanato, apenas por ser diferente. No entanto, não é a consciência da sua doença que faz com que essas injúrias e a estranheza das pessoas que o rodeiam diminua, muito pelo contrário, assistimos a um desenrolar de insultos, mais ou menos subtis à sua pessoa, sendo que o único que o faz sorrir é “Freakshow”, como lhe apelida Frank Minna, o homem que vê como uma figura paternal e que lhe entregou, aos 16 anos, um livro sobre a Síndrome de Tourette.

 

Há uma mestria na escrita de Lethem que faz com que, apesar de tudo isto, nunca sintamos pena de Lionel, aquela complacência por um ser enfermo, muito pelo contrário, o que me fez sentir foi um carinho especial pela força e personalidade deste homem que, quando todos quiseram desistir, ele ultrapassou-se a si próprio para chegar onde desejava. Não se tornou maior do que ninguém, nunca foi esse o seu objectivo, porque o “Freakshow” não era menos do que ninguém também, mas demonstrou a coragem, persistência e resiliência que só os Homens corajosos, sensíveis e verdadeiros têm dentro de si, sempre escutando a maior lição que Frank Minna lhe deixou: “Tell your story walking”.

 

Este livro foi adaptado para cinema, no ano passado, interpretado por Bruce Willis no papel de Frank Minna e Edward Norton como Lionel. Obviamente que no filme era de esperar que o enredo tivesse mais expressão do que o explorar da personagem de Lionel, no entanto fiquei um pouco frustrada com a forma tão simples, comparada com o livro, como Lionel foi apresentado. Não pensem que Norton não fez um bom trabalho, o retrato de Lionel está incrível e vale a pena ver o filme só para observar a forma como o actor consegue se consegue apropriar e transmitir os tiques vocais e físicos de maneira tão natural, tão quase-verdadeira, no entanto, talvez que se fosse outro actor eu não me sentiria tão desgostosa com esta interpretação. É uma feliz coincidência que uma das minhas personagens literárias favoritas tenha ganho vida no cinema por um dos meus actores favoritos, mas quem conhece um pouco de Edward Norton saberá que em 2001 protagonizou o filme “The Score”, interpretando um homem com paralisia cerebral de uma forma que, na minha opinião de pessoa formada em Teatro, supera tantas interpretações vencedoras de Óscares. É por isso que julgo que, na versão cinematográfica de “Órfãos de Brooklin”, e ao contrário do livro, não foi dada primazia e a importância à personagem de Lionel, impossibilitando o público de se relacionar com ele da mesma forma que o leitor, porque se fosse, Edward Norton teria entrado nos nossos corações e dificilmente seria destronado.

Antes de terminar quero deixar uma ressalva: embora tenha comprado o livro em português, quando me deparei com os vocalizos de Lionel, optei por ler a versão original, por isso, e para quem se sinta confortável a ler inglês, aconselho o original, porque a tradução, por muito bem feita que esteja, não estou a colocá-la em causa, acaba por nos fazer perder ou a musicalidade ou o conteúdo das suas expressões.

Para comprar a versão portuguesa  ou a versão em inglês, podem usar o meu link de afiliado Wook.

 

 

Podem ver a minha opinião no youtube:

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