Opinião

“Fome”, “Mistérios” e “Pan” de Knut Hamsun

Se procurarem o livro “Fome” na Wook, irão encontrar esta opinião:

“Primorosamente escrito, compulsivamente lido, este livro que nos coloca na cabeça de um jovem maníaco-depressivo que se impõe a períodos de fome, não deixa ninguém visceralmente indiferente. Percebe-se o talento tremendo de Hamsun. Mas também se acompanha um jovem elitista e snob, escrito pela pena de um confesso xenófobo, adorador de Hitler, e nunca arrependido. Não consigo, mesmo Três estrelas pelo mérito literário. Muito gostaria de as retirar.”

 

Ter Knut Hamsun, laureado com o Nobel da Literatura em 1920, nas nossas estantes, listas de leitura ou lista de “nunca na vida” pode não ser uma decisão determinada pela qualidade literária do autor, mas sim pelos valores e convicções de cada leitor. O aclamado autor norueguês, tem sido mais reconhecido pelas suas ideologias políticas do que pela sua obra – nos últimos anos da sua vida aliou-se a Hitler durante a ocupação do partido nazi à Noruega aquando da Segunda Guerra Mundial.

Nos nossos dias, o mesmo se passa com Peter Handke, cujo Nobel foi alvo de várias petições para que a sua atribuição fosse retirada, devido às suas posições em relação às guerras na ex-Jugoslávia. Mas nem é preciso ter recebido um Nobel para ser elegível  a entrar para a lista de “autor non grato”, basta olhar para os milhões de fãs que crucificaram J. K. Rolling devido a tantas declarações nas redes sociais. Verdade seja dita, que nem precisam de ser autores com grandes obras publicadas, ao Hitler bastou apenas a sua vida escrita em papel, para que “Mein Kampf” seja considerado por muitos como um livro que devia ser “proibido”.

 

Knut Hamsun nasceu em 1859 e viveu os seus primeiros anos em extrema pobreza, tendo começado a escrever muito cedo dentro do género juvenil e, aos 30 anos lança aquele que é, provavelmente, o seu mais aclamado romance “Fome”. A sua condição social tornou-o um autodidata que começa a escrever sem o background literário e intelectual da maioria dos escritores europeus da altura. E é este pormenor que torna Hamsun um dos mais importantes escritores do início da literatura moderna. Fome, o seu primeiro romance é de tal forma arrojado e tão distante da sua literatura actual que determina uma grande mudança no paradigma da literatura daí para a frente. É a primeira vez que um texto se nos apresenta sem enredos, sem personagens, sem tempo histórico, utilizando a primeira em discursos completamente aleatórios e, muitas vezes contraditórios – ou seja, um livro que desafia todas as regras da boa literatura que se consumia no final do século XIX.

 

No seu prefácio, Paul Auster resume muito bem de que trata Fome, que é daqueles livros que podemos contar a história toda sem que isso retire o usufruto da leitura de quem nos lê:

 

“Um homem jovem chega a uma cidade. Não tem nome, casa ou trabalho; ele veio para a cidade para escrever. Ele escreve. Ou, mais precisamente, ele não escreve. Ele passa fome até estar quase morto. (…) “O processo é inevitável: ele tem de comer de modo a escrever. Mas se não escrever, não conseguirá comer. E se não pode comer, não pode escrever. Ele não pode escrever. Ele escreve. Ele não escreve. Ele vagueia pelas ruas da cidade. Fala em voz alta para si mesmo em público. Assusta as pessoas, que se afastam dele. Quando, por acaso, consegue algum dinheiro, oferece-o. É posto fora do quarto que arrendara. Come e depois vomita tudo. A certa altura namorisca com uma rapariga, mas nada daí resulta a não ser humilhação. Passa fome. Amaldiçoa o seu mundo. Ele não morre. No fim, sem razão aparente, oferece-se para fazer parte da tripulação de um barco e parte da cidade.”

 

Parece simples, mas o que vamos ler está para lá do simples. Mas sobre isso, falarei mais à frente.

 

Mas, apesar de estar a dar mais atenção e destaque a Fome, não foi o livro com que conheci Hamsun, mas sim com Pan, onde estas características são menos identificáveis, visto que já há um enredo, personagens com uma ligeira construção, uma contextualização da acção no tempo histórico embora a personagem principal se debata com as suas questões exactamente da mesma forma, através de monólogos exaustivos, alucinações, atitudes impulsivas e contraditórias. Pan conta-nos a história de um Tenente que se instala numa cidade e que tem de lidar com o enamoramento por duas mulheres, uma menina da alta sociedade e um mulher do povo já casada e que, quando ela acaba por morrer, apanha um navio e segue para a cidade seguinte.

 

Talvez que a grande diferença seja a nível da linguagem. Em Fome, encontramos uma linguagem muito mais coloquial, escorrida e sem recorrer a grandes artifícios linguísticos, como a que podemos encontrar facilmente na literatura contemporânea:

 

“O Sol estava a sul, era cerca do meio-dia. A cidade tinha começado a girar em pleno, a hora do passeio aproximava-se e ao longo da avenida Karl Johan ondeavam, acima e abaixo, massas de pessoas que se saudavam e sorriam. Apertei os cotovelos contra o corpo, para me fazer pequeno e esguio, e assim passei despercebido por alguns conhecidos, que tinham ocupado uma esquina da universidade para observarem quem passava. Deambulei pela calçada do palácio acima, mergulhado em pensamentos.”

 

Já em Pan, a linguagem apresenta-se mais formal e de construção mais complexa com mais ao encontro da linguagem utilizada nos romances dessa altura:

 

 “De cada vez que encho o cachimbo, o tabaco forma um tom rubro sobre as cinzas; de modo igual se me incendeiam na mente, à menor evocação, as ideias. (…) Ah, que duros dias de adversidade! Eis-me sentado na montanha; a aragem traz até mim os mugidos do mar e o seu hálito salobro, e propaga seus clamores pelas anfractuosidades da penedia.”

 

Essa diferença de tipo de escrita fez-me pensar que “Pan” teria sido escrito antes de “Fome” e, quando percebi que havia sido ao contrário (4 anos e 3 livros de diferença), decidi ir à procura de um terceiro título para perceber melhor o autor. Escolhi “Mistérios”, a sua segunda novela, onde encontro um misto de ambos os estilos. Em “Mistérios”, um homem misterioso, de fato amarelo brilhante, desce de um navio que parte sem que ele torne a embarcar, o que o faz decidir viver uns tempos em Kristiania (antiga Oslo), no mesmo dia em que acontece se encontra um homem morto, aparentemente de suicídio. Este homem enamora-se de uma rapariga da alta sociedade. o seu sentimento cresce e a sua carteira perde volume à conta de tentar ser aceite naquela sociedade e desta forma os seus mistérios vão-se revelando, enquanto ele revela os mistérios dos outros à sua volta. Quando nada mais há a revelar, o já não misterioso homem parte para uma última viagem.

 

Nos últimos dois livros, é notório que o tema da fome se repercute, embora de formas diferentes. Até em Fome, podemos encontrar duas fomes que geram tamanho desespero ao narrador e se isso não tivesse sido claro para mim ao longo do texto, Antonin Artaud, na sua epígrafe, não deixa que isso me escape. Antes de mais, devo confessar que ler um livro com um prefácio de Paul Auster já era um selo de qualidade, mas quando a ele se acrescenta uma epígrafe de Artaud, eu crio à partida uma relação com o livro como talvez não tenha criado com nenhum outro desde que deixei de ler teatro regularmente. Antonin Artaud foi um actor, dramaturgo, encenador e teórico que surgiu durante a revolução teatral que rompe com a tradição do teatro naturalista, reconhecido como o método de Stanislavski. Ele criou o chamado “Teatro da Crueldade” que, entre muitas outras ideias, defende que o teatro não é entretenimento, mas que deveria servir para abalar as convicções da sociedade, despertar os seus medos e explorar as suas angústias, a par com estas ideias a sua visão da importância da encenação e da forma como era praticada, levou-o a arriscar em espectáculos de teor surrealista que davam início a novas relações com o público, o chamado: “destruir da quarta parede”. E é por gostar tanto do espiríto visionário de Artaud, que a sua epígrafe me faz sentir logo: “Eu vou gostar muito disto!” e, quando li os primeiros parágrafos do prefácio (que por norma leio apenas no fim), tive as minhas suspeitas confirmadas. De repente, quase que não precisava de ler o livro para lhe dar umas sólidas 5 estrelas no Goodreads.

Artaud escreve:

 

“Aquilo que é importante, parece-me, não é tanto o defender a cultura, cuja existência nunca impediu um homem de passar fome, mas sim o extrair daquilo que se chama cultura, idéias cuja força motivadora seja idêntica à da fome.”

 

Talvez para mim que estudei teatro, esta frase faça mais sentido do que para quem não estudou. O processo de criação, por vezes o melhor, passa muitas vezes pelo explorar de angústias, medos, traumas. Agora que faço sessões de psico-terapia, não sinto assim muita diferença entre alguns processos criativos e os 50 minutos semanais com a minha psicóloga. É neste sentido que entendo as 3 obras de Hamsun, cada um dos seus narradores tem uma fome dentro de si, em Pan, a fome do verdadeiro amor, em Mistérios, a fome do reconhecimento e aceitação e em Fome, o autor vomita-nos as suas próprias fomes, a física por que, de facto passou, e a fome de inspiração, de escrever. Porque em ambas as fomes, se vomita quando quando finalmente enchemos o estômago depois de longos períodos de privação.

Se quiserem adquirir alguma das obras do escritor através do meu link de associado Wook.

 

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