“Por Ladrar Noutra Coisa” de Guilherme Duarte
Guilherme Duarte é um humorista português que começou a sua carreira através do blog “Por Falar Noutra Coisa” em 2013. A partir dele, lançou-se nas plataformas sociais, incluindo um canal de YouTube e Podcast (que já terminou), e iniciou-se na stand-up comedy. Com “Por Ladrar Noutra Coisa” vê o seu 4ª livro editado.
Fiquei muito expectante com este livro pois, não só estou no início do meu projecto de ler humor o #desafiosillyseason#desafiosillyseason, como era o livro de um humorista português que não prometia crónicas ou biografias, e, por fim, e o mais importante talvez, tratava da história de Zaya, a cadela pit bull que, há 4 anos Guilherme Duarte, resgatou de um canil, depois de anos de maus tratos – além de que era prefaciado pelo Nuno Markl e, se tinha o aval do Markl, para mim era o suficiente para avançar sem receio.
Por norma, gosto de complementar as minhas opiniões entre Blog e YouTube e, com este livro senti que isso fazia ainda mais sentido, porque, confesso desde já, foi um livro que me custou muito a ler e, por isso, muito também a pensar sobre como fazer esta opinião. Decidi então direccionar o espaço no blog para as minhas considerações relativamente ao tipo de humor presente no livro e, utilizar o vídeo para focar a importância de um livro deste género na desmistificação de muitos tabus que ainda existem com a adopção de cães, seja a nível de raça, de idade, de comportamento, de espaço, etc…
Este foi um livro doloroso, um livro que não abandonei logo no início por várias razões, uma delas porque queria continuar a entender esta relação do Guilherme com a sua cadela que era enternecedora e que a fazia, pouco a pouco, perder o medo que acumulou durante anos e anos. O livro é-nos apresentado como um diário e começa uns dias antes do Natal, na primeira noite que Zaya passa em casa dos novos donos e termina um ano depois, com uma Zaya que já não tem medo do acto de tirar um cinto das calças.
Ao longo de um ano conta-nos histórias e faz-nos perceber como se vai deixando entregar e confiar, não só naquelas pessoas, mas também nas pessoas em quem aquelas pessoas confiam. E, este processo está muito bem explorado, muito bem descrito e é, não só um exemplo, como julgo que pode ser um guia para quem ainda tem questões com a adopção. Não que eu seja uma expert do comportamento canino com mais certificados na parede que um salão de estética, mas eduquei 4 cães até aos 3 anos, todos resgatados, alguns vítimas de maus tratos e uma delas, já com 8 anos, ainda muito traumatizada. Mas sobre isto, e para não alongar muito, podem ver o vídeo no YouTube.
O que me custou neste livro foi o tipo de linguagem que o humorista escolheu, junto com a personna que atribuiu à cadela. A ideia tinha tudo para resultar, mas o tipo de humor que utiliza entra pelo caminho da piada fácil. Basicamente Guilherme Duarte quer pôr-nos a rir, e fá-lo através do uso abusivo de palavrões, na minha opinião completamente desnecessários – eu estou longe de ser uma puritana em relação ao uso de palavrões, apenas julgo que, muitas vezes, eles são usados como muleta à comicidade e acabam por tornar a linguagem brejeira em vez de interessante e, a mim, não é o tipo de humor que me interessa.
Posso dar exemplos de humoristas como Nuno Markl, Ricardo Araújo Pereira, ou Seinfeld que basicamente não usam palavrões nos seus textos. Por outro lado temos Bruno Nogueira e João Quadros que usam alguns (eu sei que podia começar usar outras referências, mas em equipa vencedora não se mexe!) ou Jimmmy Carr que usa bastante, mas que conseguem fazê-lo sem tornar o discurso brejeiro ou ofensivo (Viram o que fiz aqui? levei-vos ao engano, para depois, pimba! afinal eu trago coisas novas!). Mesmo que olhemos para Fernando Rocha, que usa e abusa dos palavrões, é um homem do Norte, é a sua linguagem, a forma como o faz, não fere da mesma forma como eu sinto que me feriu este livro, talvez mais por, supostamente ter sido escrito por um cadela. Expressões como “o caralhinho” e “mete isso no cu” são demasiado frequentes, já para não falar das típicas: “merda” e foda-se”.
A Zaya é uma cadela que sofreu muito e que, num golpe de sorte, foi retirada de um canil. E digo num golpe de sorte porque ir ao canil escolher um animal, para o escolhido, é mesmo assim: um golpe de sorte. É por isso que muitas vezes se ouve dizer: “Foi ele/a que me escolheu a mim”, porque às vezes basta um olhar, um abanar de cauda, às vezes basta estar enrolado de medo num canto da jaula, as hipóteses são tão mais mínimas quanto os factores sejam mais variados. E, enquanto cadela que sofreu ela agradece tudo o que lhe é dado nesta segunda vida que este casal lhe proporciona. Mas, como cadela que nunca teve afecto e casa, por isso é normal que comportamentos como, xixi e cocó dentro de casa, ladrar ao nada e destruição de sofás, demorem a ser controlados, imagino que alguns possam nem desaparecer por completo. Tal como o ladrar ao nada, o ladrar na rua a outros animais significa que ela é uma cadela extremamente reactiva, comportamento que resulta, não só dos traumas a que foi sujeita, como também do facto de não ter sido socializada, todo o contacto que tinha com outros cães era no âmbito das lutas de cães e nem como lutadora, mas sim como isco para preparar os verdadeiros lutadores, é por isso que Zaya tem os dentes limados ao máximo, para que não consiga morder. Já com humanos, o contacto que tinha era com base no medo, na ameaça e nos maus tratos, até ter sido abandonada, atada a uma árvore, quando deixou de servir o seu propósito.
É óbvio que o Guilherme Duarte, como humorista que é, vai querer aligeirar esta história e tornar a Zaya mais leve, esperançosa e com um novo olhar sobre a vida. Talvez para isso, tenha usado o trocadilho bitch, na língua inglesa cadela (animal) e cabra (mulher sem escrúpulos). atribuindo-lhe uma personalidade cool que consegue, no meio de alguma sensatez e ironizando comportamentos humanos, tornar-se insuportável.
Rui Zink, no prefácio do mais recente livro de João Quadros, o humorista que muitos consideram como a grande besta do humor, aliás, do Twitter, diz algo muito importante e que nunca me vai sair da cabeça: “a única ética do humor (…) consiste em apontar a mira sempre para cima ou em frente, nunca para quem está em baixo. (…)” E o que a Zaya faz aqui, na grande maioria das vezes é apontar a arma para baixo. É elevar-se perante os outros animais,não só os gatos, o que pode ser normal, mas também outros cães, fazendo até listas de raças de cães indicando os seus defeitos e apelidando-os de “burros”, “gordos” e “estúpidos”, que aliás são termos que ela gosta muito de atirar ao desbarato, porque nem os humanos escapam a esta mira.
Outra questão que me incomodou, na persecução do humor brincando com o conceito de Alfa, é que de cada vez que se refere ao seu dono, através dos pronomes “ele” e “lhe”, fá-lo sempre com maiúscula no início, “Ele” e “Lhe”, enquanto a dona não é digna de tratamento especial, ômega, ômega, ômega. O que não deixa de ser estranho quando ela própria discorre sobre o facto de quando se fala sobre a espécie canina se falar no cão e nunca na cadela, usa-se sempre o masculino.
Ora, enquanto todas estas formas de insulto sejam recorrente no humor, na minha opinião, e não o posso ressalvar vezes suficientes, nesre caso elas não passam de muletas para conseguir um riso fácil e imediato. Mas não me quero estar aqui a teorizar sobre a diferença entre comédia e humor e de como os bobos foram dispensados porque a corte começou a apreciar um humor mais refinado, ao invés da comédia fácil e previsível – discutiremos sobre isso mais tarde e de forma mais aprofundada, primeiro porque não sei o suficiente e depois porque não o meu intuito é não analisar o tipo de humor de Guilherme Duarte, mas sim o que encontro neste livro.
Quis apenas introduzir aqui o tema para deixar no ar que, tal como nos géneros literários, o humor tem várias formas e há público para todas essas formas. Eu adoro humor negro, por exemplo, quanto mais negro melhor, no entanto, há quem não o suporte. Da mesma forma que eu não aprecio de thrillers e uma grande parte dos leitores adora.
Eu podia falar-vos de muito mais, mas iria entrar em campos que não quero explorar aqui. vou apenas deixar-vos exemplos do tipo linguagem que a Zaya usa que, podem dizer que é tirada fora de contexto, mas a verdade é que o contexto é todo o livro:
“O Cajó também mija nos cantos dos prédios, mas só porque é um porco de merda, não é para marcar território, O Cajó é um burro, é o que é. (…)”
“O meu dono hoje tentou meter-me aquela merda no focinho outra vez” (um açaime)
“O Quentin tem uma mania do caralhino”
“Eu não sou nenhuma rafeira”
“Uma mola no cu?”
“Tomem mamas no focinho”
“Foda-se, que merda de profissão!”
“No Carnaval vou mascarar-me de Dartacão, mas vou ser a Zaya, a Dartacona.”
“Sempre que me abano largo dois quilos de areia e tenho o cu que parece um panado.”
No entanto, não posso dizer que todo o humor é mau, as frases motivacionais estão muito bem conseguidas e foram, sem dúvida, a minha parte favorita. A Zaya pega num cliché da internet e transforma-o, através do sarcasmo, em punch-lines motivacionais do mundo canino.
Outro lado que a Zaya tem é uma sensibilidade aguçada e sarcástica para observar e comentar uma série de comportamentos humanos que considera idiotas, com os quais eu concordo na sua grande maioria e que, quando disccorre sobre eles enquanto pensamento, sem recorrer a artifícios pré-estabelecidos da comédia, se tornam grandes momentos de humor, como por exemplo quando cria a sua página de instagram e tira umas foto num dia de praia:
“Valeu pelas fotografias que tirei para o Instagram. Tirei mais de cem e agora vou metendo uma por dia , para parecer que estou sempre de férias na praia. È assim que as influencers fazem: fingem que estão lindas na praia todos os dias, de pele lisinha, mas na verdade estão num T1 na Amadora. (…) Sinto que é injusto para as influencers humanas o facto de eu estar a competir com elas no Instagram. É que elas só têm likes porque mostram as mamas quase todas, e eu tenho 8 mamas que posso mostrar sem nada a tapar. Os mamilos das cadelas não são censurados.”
Há mais exemplos deste géneros e abordo mais alguns no vídeo abaixo
Em resumo, quase nunca me diverti ao ler este livro, antes me saturei imenso e, de cada vez que lhe pegava tive vontade de desistir dele. No entanto, mais uma vez, o que me fez levá-lo até ao fim foi o quanto fiquei comovida com a história de Zaya e como Guilherme Duarte lhe possibilitou outra vida de forma tão consciente e complacente, sempre com toda a ternura e rigidez que se deve ter quando se lida, não só com um cão com um porte destes, (potencialmente qualquer coisa ou não), mas com um passado abusivo como o dela que além das mazelas físicas, como os dentes limados, traz consigo imensas mazelas emocionais. Vê-los ultrapassar isso juntos, para mim que tenho animais, que já tive e ainda tenho de passar por situações que ele descreve, foi um momento de identificação muito importante.
No entanto, o facto de não estar à espera que uma cadela nestas condições se transformasse, repentinamente, numa cadela xenófoba, irritante, endeusada, auto-centrada, e sem pingo de humildade, a não ser quando se via em apuros, fez-me afastar do texto.
Como já disse, a personna que o humorista utilizou para personificar a sua cadela recorre a todos os truques de comédia fácil que, uma grande parte dos melhores humoristas já largou, nunca usou ou acabou por reciclar. Imaginem aquele rapaz que quer ser O palhaço do século XXI, mas entra em palco a tropeçar nos sapatos 10 números acima dos dele para cair com a cabeça dentro de um balde e que, quando se levanta não consegue tirar. Para mim, foi mais ou menos esta a visão que tive durante o livro.
E, ressalvo mais uma vez de que falo do livro e não do trabalho do Guilherme enquanto humorista. Dessa parte falarei num outro projecto que estou a preparar sobre o humorismo em Portugal a partir do livro “Com o Humor Não se Brinca” de Nelson Nunes, que tem também versão podcast com Fernando Alvim a acompanhar o autor.
Podem comprar o livro através do meu link de afiliado Wook.
O livro vai seguir para a SOS Animal para ser leiolado por eles, por isso, se estiverem interessados, participem, ou então, podem ajudá-los por aqui.