Karl Ove Knausgård, Oslo 6 de Dezembro de 1968
Por mais que leia e releia, e releia e leia tudo o que Karl Ove Knausgård escreveu, vai ser difícil igualar o que senti quando li a abertura de “A Minha Luta”, no seu primeiro volume, publicado em Portugal com o subtítulo “A Morte do Pai”.
Talvez que isto não seja inteiramente verdade. Conheci-o através do artigo que escreveu sobre a sua viagem à Russia, publicado pela The New York Times Magazine, em Fevereiro de 2018, “A Literary Road Trip Into the Heart of Russia” e que a Revista E do jornal Expresso publicou na íntegra na edição de 26 de Maio de 2018. Enquanto percorria a Rússia, percorria a sua história sob o que via nas ruas, nos olhares das pessoas, na biografia de Lenine que transportava consigo e em toda a literatura que trazia viva dentro de si.
Sempre tive fascínio pela Rússia, e tinha terminado “Anna Karenina” há pouco tempo. Sempre tive curiosidade em querer entender mais profundamente as ditaduras e os ditadores – tinha lido, também recentemente, o livro que José Luís Peixoto escreveu sobre a sua primeira viagem à Coreia do Norte, com um D. Quixote debaixo do braço e “Mein Kampf” era um dos livros que sempre fizeram parte das minhas listas de leituras obrigatórias (mal sabia eu….). Sempre tive o desejo ilusório de viver num fiorde da Escandinávia e, na minha opinião, não há melhor creme para as mãos do que Neutrogena.
Estas foram as primeiras imagens que tive daquele que, na altura, estava longe de imaginar, se iria tornar, o autor que mais influência teria na minha vida e que iria alterar toda a minha relação com a literatura.
E estas, as primeiras palavras que me levaram a pronunciar o seu nome alto, junto de outras pessoas, pela primeira vez, e o que fez alguém dizer, “Eu tenho um livro dele, posso te emprestar. Não gostei muito.”:
“O passado estava em nós, pensei, não no mundo.”
“Poucas coisas são mais belas do que a esperança vã.”
Como tudo na vida, foram uma série de coincidências que me trouxeram aqui – eu só estava a comprar o Expresso por causa de uma colecção de livros sobre Jerusalém… – um desencadear de acções que, estranhamente posso dizer: me devolveu a um mundo onde nunca antes tinha estado, mas ao qual sabia que pertencia. A um mundo, com que tanto me identifico e no qual encontrei um ninho onde me recolher “in the darkest of times”, como se ele próprio não fosse “dark” o suficiente.
Quem leu o primeiro volume de “A Minha Luta”, o terceiro romance do norueguês, não fica indiferente à sua introdução. Pode não gostar de mais nada, abandonar o livro a meio, a um terço, mesmo devorar tudo, como eu.. mas aquela síncope inicial, que não deixa de ser uma bela antítese, vai ficar para sempre gravada. São breves parágrafos que descrevem, com extrema excatidão o que acontece ao nosso corpo quando morremos, aliás, mais bonito ainda, quando o nosso coração cessa a sua vida.
“Para o coração, a vida é simples: bate enquanto pode. Depois pára. Um dia, mais cedo ou mais tarde, este movimento propulsor cessa e o sangue começa a fluir até ao ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma mancha escura e suave numa pele cada vez mais pálida, e isto enquanto a temperatura desce, os membros enrijecem e os intestinos se esvaziam.” E continua com descrições que têm tanto de belo e magnânimo quanto de quase macabro e repugnante. Entre criptas de Lieberkühn” até ao número médio anual de mortes divulgado pela comunicação social, somos bafejados por um verdadeiro manual sobre tudo o que devemos saber, e sobre tudo o que nunca quisemos pensar sobre a Morte. Mas, foda-se, a morte é mesmo assim.
Penso sempre em como é curioso abrir um romance de 3646 páginas, 3552 na edição portuguesa, a falar sobre o fim.
Dois anos depois de o começar a ler, deleite ao qual tenho dedicado uma parte do meu percurso literário desde então, ainda não consigo escrever sobre ele. Qualquer mínimo texto que possa escrever, mínima frase que possa proferir, é impossível que não venha carregada de mim por ele, completamente parcial.
Onze anos depois da publicação do seu original, 3 dias depois da comemoração do seu 52º aniversário, e depois de, um ano a adiar num ritmo quase mensal a sua publicação, dia 9 de Dezembro, é lançado o último volume de “A Minha Luta” a que muitas traduções, incluindo a portuguesa, atribuíram o subtítulo de “O FIm”.
O início começa com a morte, e eu finalizarei as últimas 1104 páginas, ao abrir do novo ano. Nada como fechar com uma boa metáfora, o que se começou a partir de uma bela antítese.
Parabéns, Karl Ove,
Podes conhecer todos os meus projectos sobre “ele” aqui.
As fotografias são propriedade de Lynsey Addario para o The New York Times