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A conjura da memória

Desde muito cedo que desejo escrever as minhas memórias – talvez num acto desesperado  de fazer permanecer o tempo em mim. Há uns anos atrás assisti a um debate sobre Alzheimer, e um dos médicos presentes fez uma observação que, apesar de não conseguir reproduzir na íntegra, nunca mais esqueci: “Uma pessoa é composta de memórias e a partir do momento em que essas memórias desaparecem, a pessoa deixa de ser.” Talvez tenha sido essa observação que tenha despoletado em mim esta obsessão pelas memórias, tavez por medo de um futuro em que perca o meu passado. Apesar de viver agarrada ao passado, sonho sempre com muita urgência no futuro, e isso é especialmente notório quando se aproxima o meu aniversário. Eu devo ser a pessoa mais feliz do mundo com a comemoração do seu aniversário. Lembro-me, exactamente, do que senti quando fiz 30 anos, aquela barreira de que todos os meus amigos me falavam com um pesar imenso. A suposta altura em que, oficialmente, nos tornamos adultos e já não existem desculpas e, às vezes, nem corpo para certos comportamentos. Mas eu senti-me muito feliz ao entrar na casa dos 30 e, como objectivo para os próximos 10 anos, prometi-me a mim mesma que viveria os 30 com a mesma intensidade com que vivi os 20, mas com a sageza que recolhi até aqui. Agora, que me encontro a meio do percurso, talvez ache que esse objectivo tenha que ver com o nunca deixar de perder de vista o desejo de criar memórias e, não só de as manter vivas em mim, como de tentar preservá-las através da tão desejada escrita sobre ela.

Mas que memórias são essas que colecciona alguém em tão tenra idade? São sempre memórias de arrebatamento, de emoção, seja de alegria ou de dor. A diferença que encontro entre as minhas memórias dos 20 e as dos 30 é que, aos 30, o arrebatamento, pelo menos o da alegria, não se encontra apenas na explosão, ele manifesta-se, às vezes especialmente, na simplicidade das pequenas coisas: um passeio matinal, um trabalho bem concluído, uma peça de roupa nova, a sensação de nos sentarmos no sofá de uma casa acabada de limpar, um beijo fugidio claro!, etc… Já o arrebatamento da dor, a noção é claramente oposta, vamos aprendendo a lidar com o que nos magoa de outra forma e o que nos destruía aos 20, já quase não nos tira o sono aos 30. A não ser quando se fala na perda, aí felizmente, ainda tenho as minhas dúvidas.

Há umas semanas, no jornal Expresso, encontrei um artigo sobre uma psicóloga criminal, Julia Shaw, especialista na “ciência da memória falsa” e autora do livro “A Ilusão da Memória” que defende que “A nossa memória muitas vezes causa-nos tropelias. Dependemos dela todos os dias. Mas a verdade é que a nossa memória está longe de ser um registo verdadeiramente preciso e exacto do passado.” Nas suas explicações, fruto do trabalho que desenvolveu, defende que devemos lidar com a nossa memória, não como um “registo correcto e sem erros de ideias, lembranças e ideias do passado”, mas sim como um “repositório de histórias que nós contamos a nós próprios, um repositório muito falível. (…) As nossas memórias são corrompidas por outras pessoas. E muitas vezes o nosso cérebro preenche os vazios da memória, sem querer, quando recorre à imaginação para determinados detalhes.”.

Pensando sobre tudo isto, na recta final dos meus 34 anos a coleccionar histórias e na minha natural predisposição para idealizar uma vida alheia à realidade, continuo perseverante nesta minha, quase insana, necessidade de registar as memórias da minha (curta) vida. Memórias essas, cujas lacunas vou preenchendo através da ilusão que vou criando sobre aquilo que vou vivendo. Reescrevendo esta minha idílica vida, através da poesia que recolho da felicidade extenuante das pequenas coisas ou da dor magnânime dos momentos que ainda me tiram o sono, fundindo-as com a inspiração que me brota das histórias que vou lendo nos livros que empilho na minha mesa de cabeceira.

E, conscientemente, e a pequenos passos dos 35, é desta forma que desejo escrever as minhas memórias, num conjunto de saudade, ilusão e inspiração que faz brotar em mim a poesia de uma vida que, talvez nem tenha sido eu a viver, sem que isso retire a veracidade a tudo aquilo que escrever.

 

Algumas recomendações de livros de memórias:

A Minha Luta” de Karl Ove Knausgård

Uma Obra Enternecedora de Assombroso Génio” de Dave Eggers

“A Sorrow Beyond Dreams” de Peter Handke

“Sou Um Crime” de Trevor Noha

“Uma Terra Prometida” de Barack Obama

“Becoming – A Minha História” de Michelle Obama

“Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola” de Maya Angelou

“Persépolis” de Marjane Satrapi

“Escrever” de Stephen King

“Apenas Miúdos” de Patti Smith

O Ano do Pensamento Mágico” de Joan Didion

The Journals Of Sylvia Plath” de Sylvia Plath

Cozinha Confidencial” de Anthony Bourdain

Eu, Malala” de Malala Yousafzai

Fala, Memória” de Vladimir Nabokov

Na Penúria em Paris e em Londres” de George Orwell

Um Longo Caminho para a Liberdade” de Nelson Mandela

 

Artigo publicado na edição de Junho de 2018 do jornal Folha de Montemor.

Ligações:

Website oficial de Julia Shaw

Artigo do jornal Epresso sobre Julia Shaw (conteúdo reservado a assinantes)

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