Clássicos e Ícones,  Opinião

“À espera de Moby Dick” de Nuno Amado

Enseada
Pequena reentrância no traçado da linha de costa, em forma de arco, aberta ao mar, sendo normalmente limitada por dois promontórios. O termo deriva da palavra seio, em latim sinus que se refere a curva, ou dobra, à qual foi adicionado o prefixo in: in seius, enseada.

Nuno Amado é licenciado em Psicologia Social e das Organizações e Psicologia Clínica e doutorado em Psicologia do Desenvolvimento. Exerce psicologia clínica e é professor no Instituto Superior de Educação e Ciências. Destaca-se em Portugal por ser pioneiro no estudo da Psicologia do Amor. “À Espera de Moby Dick” é o seu terceiro livro.

Muitos de nós temos uma “baleia branca” e, na maior parte das vezes, essa baleia não passa de uma ilusão que fomos construindo, sozinhos e/ou através de projecções nos outros, e alimentando até que ela se torne num monstro. Mas não vale a pena entrar na ligação com o clássico de Melville, ou mesmo com a referência bíblica a Jonas, porque elas se tornam evidentes pelos títulos, até mesmo para quem não leu nenhum dos livros.

O narrador, de quem nunca sabemos o nome, foge de Lisboa para se refugiar numa enseada de uma ilha dos Açores, com um punhado de casas como vizinhos. Do conforto do todo urbano, passa agora para um nada simples e rural. Sem internet e sem telefone, corresponde-se com o seu melhor amigo através de cartas, a quem vai dando conta dos seus dias e pedindo que lhe envie livros, a única necessidade que sente da urbe. Foge d’ “aquilo que aconteceu” e escolhe aquele sítio em específico para se encontrar com baleias, mas para isso terá de esperar. E, enquanto espera, escreve. Escreve não só ao amigo, mas a várias outras pessoas, relembrando também cartas aos pais das viagens que fez em tempos. Não chegamos a saber o que “foi que aconteceu”, mas isso não interessa para o desenrolar da história. O que nos interessa é a procura deste homem por um género de redenção para com ele próprio, a procura pela sua baleia. “Se vim para aqui retirar o véu ou esconder-me definitivamente por detrás dele, ainda não sou capaz de dizer.” Mas ao longo do texto vamos encontrando várias solidões, incluindo a de um casal vizinho e a do seu filho.

Durante a leitura não consegui parar de pensar se tudo aquilo existia, se aquele amigo existia ou se a solidão e algum desespero, alguma loucura derivada d’ “o que lhe aconteceu” lhe despertaram alucinações que o levaram a jorrar cartas cujas respostas só apreendemos nas suas missivas.

“Quem como eu faz da sua vida uma viagem cedo percebe que o tempo se divide em dois: a permanência e a deslocação.” – escreve dos Açores, de Goa, de Paris, de Amesterdão, percorre o mundo inteiro, parecendo não sair do mesmo sítio, física e emocionalmente. As personagens mais exploradas, o narrador e o amigo, não têm nome, as restantes, na sua maioria, aparecem quase como acessórias à narrativa, o tempo em que a acção decorre não é relevante, apenas o espaço é importante e descrito com pormenor.

Como já disse, o livro constrói-se a partir de cartas e é através delas que vamos percebendo a evolução emocional deste narrador, desde o momento em que chega, à espera de ver as baleias, até ao momento em que as vê e decide regressar, pois a sua decisão de exílio nunca foi definitiva, o tempo seria apenas o de “endireitar as peças de dominó”.

É muito interessante a escolha da carta, neste caso unidireccional, como estrutura de um romance, pois transporta-nos para o universo do diário, no qual colocamos as questões que, mais tarde, vamos ver respondidas por nós próprios. A forma como me relacionei com este livro tem mesmo que ver com a sua estrutura, pois para mim, a melhor maneira que tenho de estruturar os meus pensamentos é escrevendo, sabendo que é numa exaustão desse exercício que irei encontrar o que procuro. Todos nós escrevemos diários em qualquer momento das nossas vidas, ou cartas que sabemos que não vamos enviar, como forma de nos manter em contacto connosco próprios (nos diários) e com os outros (nas cartas). A técnica de escrever uma carta a alguém com quem se tem algo pendente, a partir da premissa de que essa pessoa nunca a irá ler, é muitas vezes usada em psico-terapia. Salvaguardados pela segurança de que a pessoa nunca saberá o que pensamos, podemos, finalmente, dizer tudo o que nos vai na alma e, desta forma, abrir feridas que fecharam infectadas, para que possam agora, com ajuda do psicólogo, sarar sem problemas de maior. O papel que se fecha no envelope que se espera não mais se abrir pode ajudar a retirar muito peso morto das nossas almas. Sempre funcionou comigo, a escrita como um desabafo.

O nosso narrador, que insiste em exilar-se e separar-se do mundo de modo a tentar ultrapassar “o que aconteceu”, acaba por passar, todo o tempo que vive na enseada dos Açores, dedicado à comunicação com o mundo do qual quis fugir, o que me leva a crer que foi por isso mesmo que o autor escolhe a enseada, para reforçar a ideia de, apesar do isolamento, o narrador manter uma estreita relação com o que tentou deixar para trás. Quis correr atrás das baleias, e o que conseguiu foi fazer delas uma desculpa para tentar fugir de si próprio, até perceber, ao encará-las, que nada disso adiantava e que, a única forma que tinha de se redimir, era enfrentar o mundo do qual tinha fugido: o que seria o equivalente no processo terapêutico ao decidir enviar a carta que se escreveu!

Relacionados:

“Moby Dick” – livro de Herman Melville

“O Farol das Orcas” – filme disponível na Netflix

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