
“Your Fathers, Where Are They? And the Prophets, Do They Live Forever?” de Dave Eggers
Oh, Eggers, Eggers, que bem me fazes tu!
Para quem não conhece Dave Eggers, tenho uma pequena introdução na opinião que fiz sobre “A Heartbreaking Story of Staggering Genious”, o primeiro livro da sua carreira de escritor. “Your Fathers, Where Are They? And the Prophets, Do They Live Forever?” aparece 14 anos depois. Este é um livro cujo personagem principal, Thomas, procura respostas sobre o mundo a partir de um evento específico, a morte do seu melhor amigo. Para isso,conversa com várias pessoas que de alguma forma fizeram parte da sua vida ou estiveram relacionadas com o evento, desde um astronauta, ao médico responsável do hospital na noite em que o seu amigo morreu, até à sua própria mãe. O que vamos ver é que Thomas procura também a culpabilidade do seu fracasso nas falhas dos outros.
Vamos encontrar uma personagem perturbada pelo evento, como seria de esperar tendo em conta que o seu melhor amigo foi morto numa troca de tiros com a polícia (hmmm… onde é que eu já ouvi isto?). Uma personagem obcecada, sem consciência alguma da noção de limites, que julga que o mundo dos outros pode parar completamente durante uns dias. Não que ele não tenha razão para o fazer, Eggers procurou representar a falta de esperança e de confiança da geração mais nova, naqueles em quem deviam ver os seus exemplos (os seus profetas?). O desespero de Thomas é tanto mas claro que não justifica a forma como o faz, no entanto pergunto-me se o ouviriam e se lhe prestariam atenção, ou a tantos como ele com as suas dúvidas e as suas inquietações completamente lógicas apesar do seu comportamento, se não o tivesse feito dessa forma.
Temos como cenário dunas, armazéns desmilitarizados, uma mulher que passeia numa praia e há também um cão. E, na realidade, o livro anda à volta disto, desta procura e não há muito mais que possa dizer sobre ele, Thomas está desesperado para encontrar as respostas que julga precisar e parece só encontrar o que não quer ouvir. Podia, e tenho muita vontade de dizer mais, mas mais do que isto seria estragar o prazer da leitura e da descoberta do livro.
Curiosamente, este é um dos menos bem recebidos livros do autor, considerado incompleto, enfadonho, sem pathos, mal escrito. As reviews do Goodreas (que eu não aconselho a ler antes de lerem o livro, porque na minha opinião denunciam as maiores surpresas do livro!) são como eu gosto, vão do terrivelmente mau ao terrivelmente bom. Não é um livro consensual e, ai Eggers…, como eu adoro livros não consensuais. Algumas opiniões alertam também que, para quem não conheça a escrita de Eggers, este não é um bom livro para começar, opinião com a qual não consigo concordar pois a escrita dele parece-me ser tão versátil (os três livros que li são tão diferentes uns dos outros) que a única certeza que tenho é que mais depressa aconselho este do que “A Heartbreaking Story of Staggering Genious” que é bem mais complexo de ler, ou “O Sítio das Coisas Selvagens” a quem não gosta de livros com crianças como personagens.
Infelizmente “Your Fathers, Where Are They? And the Prophets, Do They Live Forever?” nunca foi editado em Portugal, mas a sua leitura em Inglês pareceu-me bastante simples. Talvez seja até um bom livro para ajudar a praticar e também para sair um pouco da zona de conforto da novela tradicional. Porquê?
A razão para isso é, na minha opinião, o grande spoiler do livro e tem que ver com a estrutura que está tão maravilhosamente conseguida que só me apercebi dela por volta da página 20, por isso, quem considerar isso spoiler, não leia a partir daqui.
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Porque a minha formação é em Teatro, li e analisei muito texto dramático, texto cuja acção se desenvolve a partir, e assente em, diálogo apoiado por apontamentos que dão corpo a essa mesma acção, as didascálias. As didascálias são menções que aparecem entre parênteses em determinados momentos do texto e que dão indicações ao encenador que o ajudam a recriar da forma mais exacta possível as ideias fundamentais que o autor quer passar sobre o seu texto. Elas podem ser de diversos níveis: espacial: indicação sobre o cenário a recriar (divisão de casa, rua, jardim, escola, etc…), temporal (noite, dia, chuva, muito sol, etc…), ambiente (solidão, festa, jantar romântico, etc…) ou mesmo mudanças de tons de voz para acentuar estados de espíritos (risos, gritos, choro, entre outros). Isto acontece em cerca de 95% dos textos teatrais que conheço.
E faço esta introdução enorme porquê? Antes de mais, gosto de partilhar, com quem me segue, um pouco sobre literatura dramática, um género que tem imenso para explorar (até já introduzi um pouco do tema desta revolução cultural quando falei sobre a epígrafe de Artaud nos livros de Knut Hamsun). E depois porque este livro de Dave Eggers, apesar de não ser considerado um texto dramático, está escrito, única e exclusivamente em diálogos, sem uma única didascália, algo que nem no teatro é fácil de encontrar. Claro que automaticamente, quem conhece minimamente literatura dramática, sabe que Samuel Beckett é uma instituição ao deixar os seus textos completamente em aberto, mas mesmo assim, ainda com algumas excepções! Os primeiros textos, mais experimentais da dramaturga e encenadora espanhola, Angélica Liddell conseguem chegar lá também. Mas o que ambos fazem, no domínio do teatro é um trabalho extremamente denso psicologicamente, de ambiente existencialista.
O que destaca Eggers neste romance é que ele revela uma mestria ao conseguir sustentar, não só a acção, bem como todos os ambientes exteriores e interiores, que em teatro estariam apresentados em didascálias, e no romance tradicional descritos com a precisão do cinzento do armazém de betão, com o número 58, numa tarde quente, a areia, a angústia, etc, etc, etc… . E tudo isto sem recorrer uma única vez ao discurso indirecto. E isto é de tal forma bem feito que só por volta da página 20 é que me apercebi que ainda não tinha lido nada que não fosse em diálogo. Eggers conseguiu de tal forma transmitir-me todo o ambiente da narrativa que queria contar que nunca precisou de ma descrever, deixou que os personagens o fizessem por ele através das suas conversas. Conseguir isto numa novela que não se pode caracterizar como texto dramático sem cair na monotonia, sem arrastar discursos desnecessários, sem necessitar de recorrer ao “ele disse”, ao “o outro respondeu” “ela gritou” só pode ser o trabalho de um génio da escrita.
Eu sei que sou suspeita ao falar de Eggers e que posso ter tendência a empolar o meu discurso sobre ele, afinal de contas só li 3 livros (e este foi o segundo!) e ele já é um dos autores da minha vida, tal como este livro se tornou um dos livros da minha vida também. Mas o facto é que os livros que li são tão diferentes e tão bem conseguidos que me é impossível não pensar nele de outra forma.

