“O Outono em Pequim” de Boris Vian
Houve esta:
“Folubert Sansonner deteve-se, comovido, diante da porta de Léobille e mergulhou o indicador da mão direita no buraquinho da campainha, agachada no fundo pois estava a dormir. O gesto de Folubert acordou-a em sobressalto. Virou-se e mordeu cruelmente o dedo de Folubert, que desatou a ganir em tom agudo. (…) Este empunhava uma pistola fumegante, com a qual acabara de matar a campainha. (…) _ Matei este bicharoco infame – disse ele. – Trate você da carcaça. _ Mas… – disse a irmã de Léobille. Depois desfez-se em lágrimas, pois a campainha já estava com eles há tanto tempo que fazia parte da família.”
Mas foi principalmente esta, até porque foi a primeira:
“Tirou da gaveta um par de meias à moda, formadas por riscas alternadas: uma risca azul, risca nenhuma, uma risca azul, risca nenhuma, e assim por diante. Com este modelo de meias era possível pintar os pés da cor que se quisesse, e que se ficava a ver no meio das riscas azuis.”
Não, não vão encontrar estes excertos em “O Outono em Pequim”. Eles são da autoria de Boris Vian, sim, mas pertencem ao conto”A festa-surpresa de Léobille” que foi publicado em 2003 na edição de humor da antiga revista de contos “Ficções”, dirigida por Luísa Costa Gomes. A razão pela qual os trago aqui é porque este texto foi o meu primeiro contacto com Vian, e estes dois excertos foram o que bastou para me apaixonar para o resto da vida! Curiosamente só agora, ao reler o conto para esta opinião, reparo no nome do personagem que terá, provavelmente, referências a Flaubert e a Kafka.
Quando falo de um livro gosto sempre de fazer uma introdução sobre o autor: no caso de Boris Vian, nem sei por onde começar… Um homem que morreu aos 39 e mesmo assim teve tempo de deixar uma obra tão vasta, não só na literatura como na música. Entre 1920 e 1959 Vian, que também era engenheiro e engenhocas, escreveu romances, peças de teatro, ensaios, foi crítico de literatura, compôs óperas, editou discos e tocou saxofone, a sua paixão era o jazz. Ah, ainda teve tempo de criar um pseudónimo, um escritor americano de policiais, Vernon Sulivan.
Entrar no mundo de Vian é tirar os pés da terra e permitir-se a uma viagem pela irrealidade do mais absurdo do íntimo do ser humano. Nele não há nada que seja literal, ou tudo pode ser um acaso, o universo não tem um rumo que seja comandado ou sequer controlado. Vian fez parte de um movimento francês que, curiosamente, ainda resiste a ‘Patafísica. O movimento foi criado pelo dramaturgo Alfred Jarry, mais conhecido pela sua peça “O Rei Ubu” e literalmente significa “o que está para lá da metafísica”, é a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções, o que permite que todas as definições incorrectas possam estar correctas. Jarry e Vian são nomes incontornáveis da ‘Patafísica, tal como Jacques Prévert e Eugéne Ionesco (dramaturgo romeno cuja obra eu aconselho vivamente, nomeadamente “O Rinoceronte” ou “A Cantora Careca”).
Se não conseguiram entender muito bem o conceito desta ciência estão no caminho certo para a começar a entender, na realidade ela marcou um movimento artístico (foi inclusivé fundado o Colégio da ‘Patafísica, com diplomas e tudo!) e o que ainda hoje resta dela relata-se serem honras ao mestre Jarry. E esse movimento, mais do que explicado, terá de ser lido para ser entendido. E “O Outono em Pequim” é o livro certo para isso.
Senhoras e Senhores, sejam bem-vindos e lembrem-se que Pequim pode ser onde vocês quiserem que seja.
Amadis Dudu corre atrás do 999, o autocarro que todos os dias apanha para ir trabalhar e que, nesse dia, uma série de peripécias fazem com que tenha que correr de paragem em paragem para o tentar apanhar até conseguir, finalmente, entrar. Um tempo depois apercebe-se de que o 999 toma uma direcção diferente e que está sozinho com o condutor, tendo em conta que já perdeu o dia de trabalho a correr atrás do autocarro, deixa-se ir e adormece. Quando acorda, na última paragem, está no deserto, sai e começa a caminhar.
Entretanto vamos conhecendo mais personagens que vão sendo recrutados para se juntarem a Amadis. Há uma obra a ser construída no deserto e é necessário força operária de todo o tipo. Que obra se constrói no deserto? Uma linha ferroviária. Mas, por muito necessária que essa linha ferroviária seja, como qualquer obra que se preze, vai haver um contratempo. Os planos da construção da linha atravessam a meio o único hotel que existe no deserto. Mais absurdo que o enredo só as situações que o desenvolvem. Queria contar-vos tantas delas, mas as regras do decoro impedem-me de estragar a leitura a quem se quiser aventurar.
A escola ‘Patafísica reconhece-se, acima de tudo, pelo absurdo da escrita e “Outono em Pequim” é um baú de pequenos tesouros desse absurdo:
“(…) infelizmente não acertou bem com o sítio e curou, na barriga da perna, uma doença que ainda não contraíra, o que o fez atrasar.”
“Atravessou então a rua e caminhou em sentido inverso, pelo passeio, para apanhar o autocarro onde valesse a pena.”
“Baixou a cabeça , olhou para os pés, e, como não lhes encontrou nada de especial, tornou a levantar a cabeça.”
“(…) contudo, por um curioso acaso, a sombra do abade ocupava o lugar do arqueólogo.”
Este é um livro difícil de explicar porque é daqueles que fala por si. Eu li todos os livros de Boris Vian que foram publicados em Portugal e considero que a nível deste ponto de vista absurdo, “O Outono em Pequim” é a obra-prima de Vian, embora “O Arranca Corações” esteja quase ao mesmo nível. No entanto é “A Espuma dos Dias” que catapulta o autor para o reconhecimento no nosso país. Para mim, Pequim será sempre o meu destino de eleição com este francês cuja morte, de ataque cardíaco ainda levanta diversos mitos, um deles, e o meu favorito, de que aconteceu no final de uma adaptação do romance “O Arranca Corações.” Até a sua morte foi ‘Patafísica.
Por muitos livros que leia, tenho a certeza absoluta que vai ser difícil igualar o impacto que “O Outono em Pequim” teve em mim. Talvez não só pela sua escrita (sim, o absurdo é a minha cena…), mas também porque quando o li pela primeira vez, em 2006, estava nas desactivadas Minas da Panasqueira a fazer um workshop de site-specif (um tipo de teatro que usa o local como ponto de partida para a criação). Com toda a certeza ambas as experiências se fundiram naquele local mágico.
A inspiração foi de tal ordem que, além das performances que resultaram do workshop, escrevi também um texto. Podem lê-lo aqui.