Relações conceptuais – do romance púbere à arte contemporânea
CRÓNICA EXCLUSIVA:
Felizmente não tenho adolescentes à minha volta. Infelizmente estou naquela idade em que os meus amigos já carregam consigo espécimes desta natureza.
Ao ser forçada a socializar com eles fui aprendendo algum do seu swag (tenho a certeza de que este termo não se aplica aqui mas quis ser cool e tornar esta crónica mais age friendly). Num desses encontros apercebi-me de como gerem as suas relações amorosas: já não namoram, não “andam”, nem tampouco caminham – agora continuam a fazer o que todas as gerações atrás de si fizeram, com a diferença de que “não têm nada” embora sejam exclusivos.
Isto faz-me lembrar as considerações de críticos-wannabe (sim, jovens!, nós também usamos estrangeirismos mesmo que vocês não saibam o que significa “estrangeirismo” – façam lá o esforço de atravessar o Ramalhete que o tio Eça ensina, ok?) que no final dos anos 90, conseguiam caracterizar toda a obra contemporânea com a observação “isto é o nada que é tudo!”.
Para explicar melhor vou usar as artes performativas como exemplo, porque são mais a minha cena (Garotagem, ainda se diz “cena”?). Por esta altura, e com os nossos 30 anos de atraso em relação ao mundo evoluído das artes, o panorama performativo começou a instalar-se e as artes visuais, a música, a dança e o teatro começaram a ser cada vez mais difíceis de distinguir: era o início do tudo, ou um dos… Em palco, nem os movimentos do corpo ou as falas dos actores seguiam uma linha aparentemente lógica. “Hoje está a chover”, dizia alguém enquanto fazia o pino repetidamente. “A revolução está no coração dos netos dos nossos avós!”, gritava outro a saltar numa daquelas bolas tipo pilates e com pega para a mão. Este tipo de espectáculos começou a substituir as estopadas dramatúrgicas levadas a cabo segundo O Método (juventude, provavelmente não sabem o que é, mas perguntem às vossas Siris e Alexas que ninguém me paga as crónicas à palavra!) e eu imagino que, enquanto isto acontecia, Tchékhov dava voltas na tumba a pensar no esforço intelectual que precisou para conseguir escrever o diálogo de O Tio Vânia:
_ Está um belo dia.
_ Sim, está um belo dia para uma pessoa se enforcar.
Voltando ao “nada que é tudo” na performance, seja a das artes ou a das relações púberes: Enquanto que nessas estopadas dramatúrgicas todo o significado da peça estava encerrado em si mesmo, nesta nova era contemporânea o discurso e a fisicalidade soltas e aparentemente desconexas, à primeira vista, sugerem que aquilo não é, de facto, nada! O que acontece é que a obra nasce do trabalho sobre conceitos, por norma em grupo e não sobre uma dramaturgia fechada e assinada pelo indivíduo; o que significa que o resultado está sempre directamente ligado à apreensão de cada espectador e depende do seu entendimento sobre os conceitos apresentados: para uns o nada é tudo, para outros o tudo não vale nada!
Com os púberes a conversa é quase a mesma: eles pararam de recriar a dramaturgia fechada da “relação” e começaram a construí-la a partir dos seus próprios conceitos. Chamam-lhe “nada” porque as Siris e as Alexas ainda não lhes disseram como é que isso se chama agora (eles sozinhos não têm esperteza de conseguir a proeza que a arte contemporânea conseguiu ao chamar a esta corrente de “conceptual” – e diga-se de passagem que “namorar” ou “andar” são dramaturgias mais antigas do que Istambul quando ainda se chamava Constantinopla).
Com o “exclusivo” o drama é exactamente o mesmo – e atenção que uso o substantivo no seu sentido figurativo, não só porque tive a audácia de comparar relações amorosas adolescentes com arte conceptual, mas também porque no caso de uma das partes quebrar o laço de exclusividade, vos garanto que drama acontece mesmo. A própria escolha do termo “exclusividade” reforça a ideia da procura de novos conceitos para abordar a relação, porque significa que a fidelidade também ficou em Constantinopla. Ou seja, parece que trair não é uma questão – se bem que também ainda não sei muito bem qual é a questão, mas caminhemos! O que as Siris e as Alexas não lhes disseram é que o laço de exclusividade numa relação amorosa talvez seja um pouco mais complexo do que estão capacitados a entender porque, para bem ser, tudo o que é exclusivo, exclui e é, ao mesmo tempo, um privilégio apenas alcançável, neste caso, pelas duas pessoas envolvidas no tal “nada” – são os únicos 2 lugares de primeira classe num voo de 8 horas sobrelotado lá atrás: “Ó pessoa!, se tens um bilhete de primeira classe o que é que vais fazer para junto da ralé?”
Resumindo, os adolescentes de hoje sofrem o mesmo com o amor que os adolescentes de há 4 ou 5 gerações mas com a agravante lexical. É como se eu, que agora tenho 40 anos, tivesse lido uma carta de desamor aos 17 já escrita segundo o novo acordo ortográfico: não sei o que me teria doído mais, se a ferida no meu coração ou a da língua portuguesa. No meio do nada afinal aquilo é tudo, porque quando a coisa derrapa e um deles atira o tão famoso e libertador “Mas nós não temos nada” a outra pessoa vai responder: “Mas somos exclusivos, e isso é TUDO!”
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