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Rock, Paper, Scissors, Smith

Antes de mais, quero frisar que as minhas palavras sobre o caso Smith Vs Rock dizem respeito, única e exclusivamente ao ofício do humor, e que não tenho qualquer pretensão de entrar em discussões de cariz #metoo, principalmente num assunto onde acho que isso não cabe.

Estive bastante tempo a ponderar se me queria pronunciar sobre este assunto que já cansa a internet e que, sinceramente vos digo, me abalou emocionalmente, e continua a abalar porque a única forma de silenciar os especialistas da moral de sofá, é fechar as redes sociais.

Um dos papéis que assumi na Mil e Duas Páginas foi mesmo o de tentar abrir novos horizontes sobre o papel fundamental do humor nas nossas vidas. Comecei a fazê-lo através da literatura, apresentei humoristas e espectáculos de stand-up, escrevi crónicas e presenteio-vos com piadas regularmente. Tudo para tentar mostrar que o humor nas suas mais diversas formas, contextos e variáveis é uma arte e merece o mesmo respeito que o maior clássico de qualquer cânone literário.

Tendo já justificado o que ainda nem comecei a dizer, parto então para os factos, sendo que o primeiro é o habitual:
– acusar Chris Rock de não ter direito de gozar com a doença da mulher de Will Smith sem ter, sequer, ouvido a piada.
– defender Will Smith, sem sequer saber que ele nem estava perto de Chris Rock no momento.

Passo a explicar o que aconteceu:
No momento “tradicional” de cumprimentar a audiência, Rock dirige-se à mulher de Smith e diz:

“Jada, adoro-te! Mal posso esperar para ver GI Jane 2, está bem?”

Will Smith ri-se e do nada, levanta-se da plateia, dirige-se ao palco onde Chris Rock está, sozinho, aplica-lhe uma estalada e retoma o seu lugar. Rock mantém-se imóvel, brinca com o que acabou de acontecer e Smith vocifera-lhe que retire o nome da sua mulher da sua boca. Rock reitera que era uma piada sobre a GI Jane (uma heroína do cinema representada por Demi Moore que rapa o cabelo, caso ainda ninguém saiba do que se está realmente a falar aqui) e acede a retirar o nome de Jada Smith da sua boca.

Pode discutir-se se a piada falhou, pode discutir-se se Chris Rock arriscou, pode discutir-se muita coisa, mas não se pode discutir se se pode ou não brincar com isto, porque a resposta é que Chris Rock estava a fazer o seu trabalho. Trabalho enquanto humorista. E, da mesma forma que um adepto de futebol não tem o direito de descer ao relvado para agredir um jogador por falhar um penálti, Smith não pode fazer o que fez. Até porque nesta comparação Smith nem sequer é adepto, Smith é um dos suplentes no banco que vai agredir um elemento da própria equipa, e nem é porque achou que podia fazer melhor.

Aliás, é muito pior do que isso, porque ainda 2 anos antes, Smith afirmou no programa The Graham Norton Show que experimentou fazer stand-up e que foi uma das experiências mais assustadoras da sua vida. Comparou a vulnerabilidade de um humorista sozinho em palco a apresentar material sem saber como é que o público iria reagir, ao conforto de um músico suportado por uma banda que tem um set de hits e que, portanto, já sabe que a audiência vai aderir com prazer. Mas… Karma is a bitch, como se costuma dizer, e a internet é uma bigger bitch e não esquece nada, por isso trouxe dos confins do esquecimento um clip de 1991 em que Will Smith goza com o baixista careca de um programa no qual era convidado, por “seguir as regras” da calvície, apontando para ele, referindo ainda que

“era uma piada, calma, era só uma piada.”

Quando isto veio à luz, a maioria das respostas da moralidade foram: calvície não se pode comparar a alopecia. Eu pergunto: ou um homem negro famoso a fazer piadas sobre um branco desconhecido não se pode comparar a um homem negro a fazer piadas sobre uma mulher negra de um homem negro mais famoso do que ele? Aqui tiro o chapéu aos wokes, Chris Rock foi tratado com igual desprezo como se a piada tivesse sido feito por um homem branco, ou será que não?

Isto porque me questionei se uma piada deste género feita por outro humorista teria tido o mesmo efeito em Will Smith e, por repercussão, no mundo… E, Ricky Gervais deu-me a resposta:

“Eu não teria feito uma piada com o cabelo dela, teria gozado com o seu namorado.”

Num ataque directo a Smith e não a Jada, será que ele se levantaria com a mesma atitude para ir bater a Gervais, ou aquela atitude foi apenas porque o Chris Rock é um amigo, e uma meia leca? Fica a questão…

Do meu ponto de vista, e o que gostaria de deixar bem claro é que independentemente do pontapé à baliza de Rock, (eu confesso que achei imensa piada!), Will Smith abriu um precedente enorme: legitimou todo e qualquer acto agressivo contra o humor e os humoristas que têm, cada vez mais, que defender os seus espectáculos, o seu trabalho e reeducar o público sobre o conceito da piada. Falo-vos de, por exemplo, Dave Chappelle, Jim Jefferies, Jimmy Carr e Ricky Gervais. Felizmente os últimos 2 fazem-no de uma forma tão condescendente que, quem não estiver bem atento, até parece que estão a falar a sério…

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Um ano depois:
A verdade é que, digam o que disserem, as coisas horríveis que Chris Rock disse sobre a doença de Jada Pinkett Smith, levaram o mundo a querer saber mais sobre alopécia. Como é que eu sei? Disseram-me as estatísticas do Google:

 

Para leres mais crónicas, basta seguir este link: #agoracronicoeu

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