Sopa de Naiças
Era o que estava escrito um dia, na porta da cantina da universidade: Sopa de Naiças. Tornou-se uma das piadas da turma e, para mim, nabiças tornaram-se para sempre Naiças. Naiças é fixe, soa a “nice”, algo “cool”, pode ser até uma boa táctica para impingir mais vegetais a quem não seja muito fã de verdes.
O desvio de que falo não é muito diferente dos milhares de termos que se atribuem às coisas hoje em dia no sentido de estreitar comportamentos. Por exemplo, “sexting” aplica-se à conversa de teor sexual através de mensagens de texto, no meu tempo, que começou com o IRC, isso chamava-se “sexo virtual” – pergunto-me se terão inventado um termo para o sexo por vídeo-chamada? “Facing”? Ah, espera, em termos sexuais isso deve ser outra coisa… Temos também o “jogging” que é correr, mas que na realidade difere do correr normal porque é a um ritmo constante e que é mais rápido do que andar e mais lento do que a corrida. O mesmo se aplica até ao género e à sexualidade: Trans, Pan, Bi, Não-Bi, e isto é um ninho onde vespas onde não quero entrar agora. A minha questão é que parece que precisamos sempre de um in-between, nada é demasiado concreto, tudo parece ser demasiado geral e de, repente, precisamos de caixas para individualizar uma sociedade que se quer una em direitos, e deveres.
Isto tudo porque quero falar de “stealthing”, o conceito inventado para traduzir o acto enganar acerca de uma barreira de protecção sexual, a mais comum é a de um homem retirar o preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da mulher. A minha questão é: porquê inventar uma palavra para um acto que já tem um nome? Chama-se violação! Fui pesquisar o termo e encontrei que ele pode ser considerado como violação ou assalto e o meu espanto é ainda maior: então porque é que precisam do termo? Chamem-lhe o que é: uma violação.
Falo sobre o caso de uma mulher que levou um homem a tribunal por isto mesmo. Ele acabou absolvido da condenação de violação porque a penetração (com preservativo) foi consentida. É certo que há países em que isto já é previsto no Código Penal como violação, mas a minha questão mantém-se: para quê derivar um termo que em si já tem definição? Na minha opinião é apenas abrir uma janela para que o acto em si tenha menos peso, seja desvalorizado e a vítima não veja justiça feita ao crime e ao perigo a que foi exposta: violação e possibilidade de problemas de saúde e gravidez. Este homem acabou com uma pena de prisão suspensa de três meses e teve de pagar mil euros de indemnização à vítima, sob a acusação de coerção. Outra pergunta: O que é que fica no cadastro desta pessoa? Alguma coisa que o ligue ao assalto e violência sexual? Ela não foi coagida, ela foi violada. Melhor que nada, dizem uns. Claro, também costumo ser apologista dessa ideia. Mas…
Há uns tempos vi um documentário sobre “stalking” na Netflix e fiquei a saber que as penas para violência doméstica são menores (cerca de 2 anos) do que para quem conduz sob o efeito de álcool (que podem chegar aos 8). Houve casos em que o culpado teve de ser acusado de assalto à mão armada para que tivesse uma condenação maior. Mais uma vez: o que é que fica no cadastro? Alguma coisa que o ligue à violência e agressão contra a mulher? Dilema: o que é que é melhor? Correr o risco de mandar um abusador para a rua em prisão preventiva, mas fazer questão de deixar a mancha certa no cadastro, ou acusá-lo de outro crime para que cumpra mais tempo, saindo assim impune da condenação principal?
Retiro algumas frases que, entretanto encontrei em 2 artigos do Público e que sustentam a minha opinião:
Porque é que o stealthing é, às vezes, negligenciado?
Especialistas dizem que a dificuldade de classificar o que é o stealthing tem tornado difícil falar sobre este assunto.
Há também “muita confusão porque as pessoas não sabem o que lhe chamar”. “Nunca tinham ouvido falar disto antes. Essa confusão e a natureza enganosa do acto faz com que seja particularmente subestimado.
Num outro caso, um homem de 25 anos foi absolvido porque o tribunal holandês “não estava convencido” que o arguido tivesse feito a “escolha consciente” de retirar o preservativo sem o conhecimento do parceiro.
Este afunilar levanta outras questões, nomeadamente a do ignorar o facto de que a violação acontece no seio de um casal – como existe o laço considera-se que o acto sexual é sempre consentido.
Violação é violação: todo e qualquer acto a nível sexual que seja praticado sem o conhecimento e/ou consentimento absoluto do outro. Não tentemos tapar o sol com a peneira com neologismos “fashions” que só nos fazem chorar a rir do ridículo e nos deixam confusos sobre o limiar do que pode não ser, aka: menosprezar as situações de quem é vítima.
Sim, na minha opinião, o “stealthing” é a Sopa de Naiças da cantina da ESAD.
Podem ler aqui as notícias do Público: