Rogério Casanova comenta um Ricky Gervais que eu não conheço
Rogério Casanova, cronista do Público, faz uma crítica a SuperNature, o último especial de Ricky Gervais que a Netflix estreou a 24 de Maio de 2022. Sou uma grande admiradora de Gervais, não só do seu stand-up mas também das séries que escreveu e, como tal, não consegui ficar indiferente àquilo que sinto serem observações um quanto despropositadas e infundamentadas sobre o humorista.
Primeiro que tudo devo apontar o facto de poder estar a interpretar a sua opinião de forma desviada, visto que a sua linguagem é de tal forma hermética que não sei até que ponto percebi bem tudo o que quis dizer – ainda ando às voltas com a expressão:
“O material é militantemente trivial”
Sei o que significam as palavras individualmente, mas não consigo decifrar o significado que o cronista quer atribuir ao conjunto. Casanova classifica este especial como “comédia de conforto”, que na generalidade do termo significa um espectáculo previsível, mas comédia de conforto é muito mais do que previsível, é algo leve que não questiona, não supõe entrar em tópicos controversos, apenas entretém. É o equivalente a ver uma sitcom ou uma comédia romântica. Exemplos de comediantes de conforto são Demetri Martin, Ari Eldjárn, Michael McIntyre, vá lá, Jerry Seinfeld, James Acaster.. humoristas que nos contam piadas e/ou histórias, e são maravilhosos. O que Gervais faz é outra coisa. Na minha opinião, chegar a meio de um especial de comédia e rir-me com a imagem de Deus a explicar aos bichos da Sida como se devem instalar nos rabos e nas pilas de homossexuais para os matar a todos, não é algo previsível. E dar comigo a pensar: “Olha, o Hitler quando era bebé era tão fofinho”, não é propriamente algo que considere confortável.
Mas os maiores argumentos do cronista para o falhanço de SuperNature são a falta de originalidade nos temas e o “explicar” da piada. Não sei se o Sr. Cronista tem assistido a muitos espectáculos de stand-up nos últimos tempos ou se tem até acompanhado a evolução da comédia até aos dias de hoje. Se há 60 anos o lendário Lenny Bruce foi preso em palco, tal como afirma e muito bem, hoje os comediantes são atacados em palco pelo público e até por outros comediantes… e por muito menos do que levou Bruce à prisão e ao banco dos réus vezes sem conta. Já para não falar da pressão que os “woke” exercem junto das grandes distribuidoras ou de locais de apresentação para tentarem cancelar espectáculos, só porque se sentem ofendidos. Isto num mundo em que a guerra de audiências e o lucro “no matter what”, muitas vezes se sobrepõe à moralidade, à verdade e à qualidade do produto artístico.
Dizer que um espectáculo de comédia não tem originalidade nos seus assuntos é tão válido como dizer que um novo álbum de uma fadista também não o tem. Somos seres humanos, e os assuntos que nos fazem torcer o bigode ou fazer chorar as pedras da calçada são universais. It’s Super Nature.
Há ainda muito a dizer sobre este artigo como por exemplo que o The Office foi um sucesso que Gervais “sacou do nada”. Que tenha sido um sucesso inesperado, aceito, mas o que me parece é que este “do nada” descredibiliza a intenção de um homem formado em filosofia que quis escrever uma comédia dramática assente na dor existencialista de um homem que apenas quer ser gostado, ser o melhor chefe que os seus empregados podem ter.
Outro assunto é o facto de achar que:
“Um dos aspectos mais engraçados do especial, aliás, é o facto de a Netflix ter pago 20 milhões de dólares em 2022 por algo que parece ter dado tão pouco trabalho a fazer em 2003.”
mais uma vez, Casanova não parece ter noção de como funciona o mundo do espectáculo. A Netflix comprou a produção e o que está a pagar é o privilégio de ter o espectáculo, e Ricky Gervais, no catálogo, e não me parece que saia a perder… É como dizer que, quanto mais experiente o artista se torna, menos dinheiro deve receber pela sua arte.
Mas gostar de humor também é isto, que cada um de nós acaba por se moldar às suas influências e eu nunca neguei as minhas, as ácidas, o deleite do sarcasmo mais, ou menos, fofinho. Por isso mesmo fui pesquisar o humorista que Casanova “acusa” Gervais de “emular atabalhoadamente”, Stewart Lee. Bastou-me abrir um pouco do seu último espectáculo no Youtube para perceber que passa muito tempo a criticar os milhões de dólares que a Netflix investe em comédia stand-up e nos humoristas que a ela se “vendem”, especialmente Ricky Gervais. Por isso admito que posso eu também estar a puxar a brasa à minha sardinha nesta defesa da minha dama, ainda que nunca tenha ouvido Gervais a falar sobre Lee.
Ainda em relação a comédia de conforto, há sim um lado verdadeiro sobre isto no humorista: No final ele fala sobre o conforto da comédia, ou do “bullying” como lhe chamam agora, e de como uma piada pode ser o substituto de um abraço numa situação de fragilidade, como num funeral. E sobre isto também já tenho falado e trago sempre à baila a TedTalk de Nuno Markl “Rir em face da desgraça” e a isto sim, eu chamo originalidade.
Mas há momentos em que acho que o humor de Gervais é confortável, como por exemplo no seu monólogo de apresentação dos Golden Globes, em 2020, quando enxovalha os actores pela sua nulidade e pelo pouco valor que trazem ao mundo em relação à pompa e circunstância que se quer fazer acreditar ali. Pelo menos, eu senti-me bastante confortável…
Ricky Gervais actuou em Portugal pela primeira vez a 28 de Outubro com o seu mais recente espectáculo “Armageddon” que estreia na Netflix a 25 de Dezembro: Boas Festas.
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