Crónicas,  Mil e Duas Páginas

De Budonga a Budonga


 A viagem da metamorfose criativa

Era uma vez uma barata que um dia acordou e era um Homeostético…

Era uma barata. Muito barata, muito normal. Barata não no sentido depreciativo do termo, mas sim no sentido de animal ou insecto. Vivia na sua casa barata com os filhos baratos. Baratos, os filhos, também não no sentido depreciativo, mas no sentido da mãe barata. Já à casa, como não pode ter o de animal ou insecto, porque é uma casa e não um animal ou insecto, restou-lhe o tal outro sentido.
_ Mas o que é que me aconteceu?
Tentou mexer as suas várias perninhas, mas elas haviam-se transformado em quatro membros opulentos, de estrutura e funções diferentes. De cada vez que tentava mexer um desses membros percebia cinco pontinhas semelhantes em cada um que se mexiam quase autonomamente, sem que ela percebesse muito bem como comandar tal situação corpórea. Tentou arrastar-se pela casa naquela nova condição, mas depressa percebeu que o seu modo de locomoção não coincidia com este seu novo estado. E, mais depressa do que a sua nova consciência podia perceber, aquilo a que o homeostético chamaria de joelhos e que a barata desconhecia, impulsionaram-se e de súbito aquela barata transformada em homeostético estava de pé, sobre dois membros e saltava muito. Os seus joelhos impulsionavam o seu corpo estranho de tal maneira que batia com a cabeça no tecto. Há que ter em consideração que as casas das baratas não são assim tão altas quanto isso. Mas o importante não é a altura da casa das baratas mas sim o descontrolo em que este novo homeostético se encontrava, incapaz de prever os seus próprios movimentos e cada vez batia com mais força com a cabeça no tecto. E de tanto bater o seu corpo parou. E ali ficou, estatelada no chão, num corpo novo.
Não sabe precisar quanto tempo ali ficou, estarrecida, recusando-se a mexer-se com o eterno receio de descobrir mais uns movimentos descoordenados que lhe provocassem mais mazelas no seu corpo novo. Sabia que as feridas nas baratas saravam depressa, mas o corpo do homeostético era tão diferente, que pelo sim pelo não, resolveu ficar quieta.
Apesar de não saber há quanto tempo ali estava, gostava daquela posição, podia pela primeira vez sentir as costas nos chão. E o fresco sabia-lhe bem ao corpo novo, demasiado quente de tanta agitação repentina. O corpo ia arrefecendo e a respiração ia acalmando. Naquele estado há tempo indefinido, começou a notar um efeito colateral estranho. A irrequietude do corpo passara-lhe para os olhos e nunca havia visto de maneira tão abstracta como naquela altura. À sua frente passavam-lhe imagens que não conseguia distinguir, e só um tempo depois percebeu que era a sua cabeça que as provocava. No meio de uma sinestesia alucinante conseguiu distinguir apenas as que lhe eram familiares e focou em duas árvores. Ao alhear-se do rodopio percebeu-lhes um ar tchekoviano de passividade consciente enquanto assistiam a uma estranha dança de uma mulher nua. De repente, o homeostético, já longe de ser barata, foca na mulher nua e assusta-se quando começa a sentir estranhos impulsos na região pélvica, que só mais tarde perceberia.
Agora que já sabia controlar os joelhos, levantou-se e dirigiu-se à porta. Esperava encontrar um carvalho e um eucalipto, ou na melhor das hipóteses a mulher nua, mas à sua frente apenas lhe restava um caminho,
_ Knossos?!
Foi quando percebeu que o aguardava um terrível destino pseudo-verborróico-inútil, pois começava a perceber, involuntariamente, o significado de Knossos.
Assim que caminhou espelhos dentro, o ar tornou-se cada vez mais rarefeito. Knossos era uma floresta macabra com colinas de todos os feitios, desde os autocarros da Carris flutuantes até maminhas e árvores com sexus-plexus de animais. Entre um carvalho e um eucalipto, o homeostético cruzou-se com uma vaca que, instantes antes de morrer, contava a história de como se tornara a última de todas as vacas sem descendência a uma mulher de opulentos seios que se masturbava a pensar num exército de 300 guerreiros aqueus.
Assustado por gostar destas imagens e por começar a sentir os olhos a revirarem-se e uma espuma a sair-lhe da boca, o homeostético pensou,
_ Bolas para os estupefacientes.
E fugiu dali para fora o mais depressa que pôde.
Correu tanto ou tão pouco que no fim do pensamento,
_ Ora bolas, ainda bem que sou um homeostético novo, ainda sem barriga e os meus problemas alcoólicos ainda não se manifestam. Se eu fosse ainda uma barata não conseguia correr a esta velocidade.
E sem dar por ela, já estava num outro sítio bastante diferente de Knossos. Só quando ouviu,
_ Augusto!
é que acordou para a nova realidade onde se encontrava.
_ Augusto!
O homeostético olhou para todos os lados sem encontrar a voz que o chamava.
_ Augusto Barata!
Augusto já não lhe era fácil de entender, então com o Barata junto ainda se tornava pior. A aporia no seu estado mais sublime. O seu novo eu em confronto com o antigo. Homoestético Augusto Antiga Barata (já se sabe que não no sentido depreciativo do termo). O mundo havia desabado aos seus pés e já nem as árvores filósofas continuavam presas ao chão da sua própria sabedoria. Seria por isso que deu por si a flutuar? Tornou a pensar:
_ Pelo menos desta vez não corro o risco de ser o Pedrito (de) Portugal dos autocarros da Carris.
_ Augusto Barata!
_ Mas quem és tu?
_ Eu sou o alfa e o ómega. Eu sou 999. Eu sou o déspota do bom gosto, a terceira sexualidade,
E o homeostético suspira, completamente desesperado:
_ Eis a minha perdição.
_ Augusto Barata, não tens nada para dizer?
_ …
_ És sensato, O bom-gosto assenta sobre um vazio total, num desertamento de ideias e sensações. Dar-te-ei, antes de partires, uma selecção dos meus melhores aforismos para que te orientes nas próximas estações.

O sonho do comunismo é a redução ao sempre-pequeno, à mediania dos sonhos, à mediocridade, à mesquinhez.
Pergunto, amigo, a quem pode interessar a mediocridade? – aos comunistas!
A grande diferença entre o útil e o funcional – o útil utiliza-se e o funcional funciona. O útil é para as massas. O funcional é para a instrumentalização das massas ao serviço do inútil.
Baralhado com tal manifesto de intolerância, o homeostético fica baralhado e sem eira nem beira solta um
_ Obrigado então.
Ao que a voz lhe responde,
_ O agradecimento é uma humilhação cínica.
Obstinado, o homeostético responde,
_ Olha lá. Eu não sei o que me aconteceu. Ontem adormeci barata, no tal sentido que já foi dito que não é o depreciativo do termo, e hoje acordo homeostético e dou comigo a falar com uma voz depois de percorrer a floresta mais estranha da imaginação humana. Mas eu nem sei o que é ser homeostético. Posso ao menos escolher ser um ser humano, já que não posso voltar à barata?
_ Afonso Barata, quando o faquir tropeça pode cortar a garganta.
_ Ora fodasse para isto tudo.
Peidou-se e a voz calou-se.
Depois de um tempo, sempre indeterminado, uma placa de leds vermelhos aparece à frente dos seus olhos a piscar NOVA IORQUE. E, redundantemente para quem lê, num piscar de olhos, à sua frente encontra um ornitorrinco e um polvo recitando um poema:
_ Ser moderno não é para toda a gente
Nem calculam o que tem de se aprender
_ È olhar para um Picaso e de repente
Perceber logo o que aquilo quer dizer
_ É deixar crescer no queixo uma barbicha
_ Das que são mal semeadas p’ra irritar
É ser magro e feio como uma salsicha
_ Quanto a banhos nem sequer é bom falar

_ Ser-se mal criado é moderno
_ É moderno
_ E despenteado,
_ É moderno é moderno
_ A Chopin e Lizst, preferir o twist
_ E além disso
_ Bem moderno não será quem não dançar o “ali-ali”??
_ (Diz Bossanova) E o cha-cha-cha

_ O meu primo nem sequer corta o cabelo
E as madeixas vê crescer com optimismo
Quem o vê pode pensar que é desmaselo
_ E afinal aquilo tudo é modernismo
Suas calças bem estreitinhas nunca escova
Quando anda faz uaam ar todo gingão
_ Diplomado em cha cha cha e….
_ Bossanova, quando fala é um mestre no calão.


  •  Knossos é referência ao texto de 1982 que Manuel João Vieira escrevera e  que marca o inicio da “pornoecologia” homeostética.

  •  Augusto Barata é um heterónimo de Pedro Proença criado a partir da ideia totalitarista e nihilista do manifesto de Fernando Brito, “O motor da homeostética é a intolerância; nós não pensamos, nós sabemos.”

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